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falo contra as palavras que se esvaem, paro no meio de uma fra-
se e olho em volta, como se quisesse encontrar a palavra que me
falta, como se as palavras fossem objectos. E fica a minha voz
parada. Levanto a mão, a direita, frente aos olhos de quem me
escuta, abertos, tão grandes que desaparece neles a intenção. E
procuro, aflita. As pessoas perguntam-me: que tens?, e eu, cala-
da, a sentir uma bola na garganta, feita das palavras todas de que
não me lembro, tens bócio: diz-me o meu irmão: tens bócio co-
mo a nossa mãe, de repente lembro-me de que nunca mais me
lembrei de minha mãe, e quero responder-lhe: não é bócio, são
frases esquecidas, são letras que não se juntam, às vezes, os
olhos dos outros param na minha boca, inquirem o meu silêncio
e esperam que eu fale, e o silêncio aumenta, até todo o meu cor-
po ser a falta de uma palavra, começo então a suar, as mãos fi-
cam viscosas, os lábios secos, e eles continuam a olhar-me:
fala.
(voz cega, sobre a mulher que esconde o nome inarticulado do
filho)
- que não tive, que não poderei ter

(...)

Rui Nunes
A boca na cinza
Relógio D´Água, 2003

Lucilações

a história cerca-me, povoá-la-ei unicamente do meu sofrimento
e do processo da tua transformação em sítio absoluto

quanto te vi pela primeira vez, já te tinha imaginado, por isso o
momento assumia a forma de um reencontro

esquecera todas as palavras, mas necessitaria de as reaprender
porque estava de novo só e sem salvação, tudo vivia carregado
da realidade absoluta que é o acontecimento. Eu tornara-me a
tua repetição, um animal da tua sombra

percorrera-te até ao limite, o que me ficara desse percurso:
nada: e um único nome para ele: deus. Os espelhos não me re-
conheciam.



Rui Nunes
Osculatriz
Relógio D´Água, 1992

Encontros

volto ao trabalho de escrever a deserção, embora me não doa
como antigamente, quanto tu não chegavas e havia países a
que chamávamos destinos, hoje, a fuga é por entre flores senis
e pessoas que respondem aos nossos apelos com desculpas
meigas, artifícios de desinteresse, meu querido, fizemos uma
peregrinação às vozes e tornámo-nos mais limpos no seu inte-
rior, encontrámos caminhos que não pensáramos existir, toda-
via não tivemos a coragem de com eles nos confundirmos, no
tempo da separação não identificámos os seus sinais e persis-
timos ainda pela morte um do outro

em casa, a mulher no limiar das suas raivas, sem o futuro a que
chamam destino, alinha, no parapeito da varanda, vasos de
avenca, ódios ofuscantes, eu decidi encerrar todas as salas nas
suas maldições e excluir-me dos seus percursos, para que ou-
ças o telefone retinir no mofo, no calor insalubre da decompo-
sição dos móveis e paredes, das tintas e vidros, entregues a
ninguém os olhar. A casa fechada no exterior da espera
    ela pergunta-me: o que queres fazer?
    eu respondo: estar tão atento que tudo o que acon-
                         teça seja, mesmo remoto, um seu sinal
    ela diz-me: como deves sofrer
e eu odeio-a, porque vive na vigilância da minha dor, mol-
dando-se à sua orografia
    grito-lhe: vai-te embora, emigra para os teus olhos mal-
                  fazejos, desaparece nessa circular sítio ne-
                  nhum que me vê.



Rui Nunes
Osculatriz
Relógio D´Água, 1992

Lucilações

sou o lugar que os teus pormenores percorrem indiferentes e
sofro quando os dedos param no interior da hesitação, vivo na
ruptura dos teus gestos

conseguirei alguma vez salvar-te da exclusão e restituir-te à do-
çura do enigma?

Deus só responde à morte alucinante, porém nós morremos
da violação dos pequenos contratos e sabemos que o olha de
Deus não tem desvio



Rui Nunes
Osculatriz
Relógio D´Água, 1992

Lucilações

os que amei sempre foram predispostos ao destino de personagens, como me seduz a invenção que à noite o hax faz acontecer contra os pequenos delitos da insónia, para que uma voz não oscile e eu não me aperceba de que há uma razão definitiva para o terror, amanheço ainda bêbedo de um álcool que é um lábil sentimento e recordo-te no seu interior com um nome acutilante, conheci muitos corpos e algumas vezes te esqueci nos seus périplos, mas nenhum foi o de definitivamente te perder, tu vivias neles como um sorriso, um sítio inclinado e surpreso onde a frase recomeça

quem me dera escrever um romance, uma história de segredos, porém desertou-me a lembrança de pradarias, cascatas e espaços cénicos: há só este prego no pulmão, área reduzida onde nada acontece que não seja dor, o ritmo do ar atravessado por uma linha perfurante que organiza a exacta amplitude do movimento do meu peito, as suas marés, sobre mim, a luz declina para a sua própria sombra num crepúsculo que me aterroriza porque não o posso amar, escrevo então o livro interminável

sonho-te a voz mais do que o corpo e vou até ela devagar, gosto de ouvir a vocálica sombra sinuosa e perder-me na sua incandescência

o mundo só repete o tempo inicial, percorri a ironia mas voltei para ver a tua face: um resíduo

extinguir-me é recordar-te

tu viveste o suficiente para eu desesperar, não só do teu rosto quase impensável, também de mim, na ruína matinal do espelho, quando me vejo nele, é em todo o tempo, deus que observa a sua morte

vivo cada palavra, corroo o cálcio da folha, uma criação anunciada. Dizê-la. E enveredar pelos sons multiformes desse mundo.

a mão escreve a palavra enorme da visão, transgride o branco reduzido, assusta com o seu movimento o deambular íngreme do céu, é um deus peregrino com a vida no côncavo interior da sua febre.

o quarto, tão alto, cujo tecto é um pequeno céu


Rui Nunes
Osculatriz
Relógio D´Água, 1992
regresso ao lugar que encontrou o repouso
no meu corpo: a morte é uma terra inacabada:
há ainda por lavrar o campo pedregoso onde os lagartos
consomem o dia com a sua eternidade: sobre as pedras
desenham o calor, a áspera fuga que desorienta os passos;
regresso ao lugar da renúncia: aqui, o início é um momento
do desencontro, e os cardos têm nas folhas a secura
que o vento torna vulto, aqui, nem a ruína ergue a casa
para sua habitação, nem há recanto que não cresça
na trepadeira do pó. E cada pessoa é uma sombra
onde culmina um nome rasurado. Aqui, a ave
é um traço de cegueira, a noite de um golpe
que separa os dois gumes do silêncio



Rui Nunes
Ofício De Vésperas
Relógio D'Água, 2007
«— olha. Olha o gajo,
e o bando volta‑se, têm blusões de couro, kispos, botas cardadas, o dedo indicador apontado para ele. E riem. Não lhes vê as caras, não as consegue ver, confundem‑se com as outras que passam, com a oscilação da sombra das árvores, com algumas folhas em queda, são borrões cheios de grúmulos escuros. Carne: murmura. Carne: repete. Um monte de carne. As mãos agarram‑na, erguem‑na, e depois atiram‑na para o cepo. Um som molhado e flácido cola‑se à madeira e espalha‑se nela, como água que se derrama: Uma bela carne. Os rapazes ainda ali estão, mas encostados a uma casa, uma perna dobrada e o pé apoiado na parede. Têm as mãos nos bolsos. E parecem esperar. Às vezes, voltam‑se uns para os outros e falam. Outras vezes, falam sem se voltar, olhos fixos na rua, como se falassem para ninguém. São palavras isoladas, talvez insultos, que fazem virar a cabeça a algumas pessoas, e apressam outras. O homem passa os dedos pela casca de laranja. E os rapazes aproximam‑se dele, aos pares, os ombros gingam, acompanhando o movimento dos pés. Os blusões abertos mostram as T.shirts brancas cujas pregas se desfazem e refazem ao ritmo dos passos. Cercam‑no. São tantas as cabeças inclinadas para ele, lá no alto, deixam entrever a copa amarelada das árvores, com os seus buracos de luz. A boca de um poço. Ouvia‑se a rapariga a gritar: estou aqui, estou aqui. Olhava‑se em volta e não se via ninguém.»


Rui Nunes
Os Olhos de Himmler
Relógio D' Água, 2009
daqui
um sinistro rumor o destes campos por onde corre o lobo:
rente à neve, procura na cegueira o esconderijo.
Sobre a estepe, o olho silencioso continua:
tudo o que viu é um jogo simultâneo
que o corpo atravessa com a pesada mancha informe.
É sempre o mesmo corvo e a mesma fome,
há sempre lapsos entre os mortos, mas liga-os
a indiferença dos dedos: de conta em conta, de prece em prece,
com a sua velhice que o tempo foi empurrando contra as unhas.
Hoje, na boca dos homens mudou o nome de deus,
os mortos porém continuam, a intervalos regulares,
enquanto anónimas faces investigam o que se perdeu;
hoje, o amor não tem tempo para a traição:
simples encontro de uma dor com uma dor,
nos nossos olhos queimados pela sombra


a cada passo a noite acrescenta-nos
um pouco de silêncio



Rui Nunes
Ofício de Vésperas
Relógio d'Água, 2007

vésperas da pobreza

vaguear pela aldeia e descobrir o pó entre duas casas, a teimosia
que um besouro constrói na terra com as patas: a bola de exre-
mentos rola aos solavancos, acompanha-a o som árido com que
as moscas esbatem a sombra.
a mão surge na fresta, cola-se à ombreira e ajuda o corpo a encurvar-
-se, para que se abrigue nele um pouco de frescura:
a eternidade atravessa a sua longa repetição

o peso do adobe: centelha de pó em queda pela luz

rua a rua, muro a muro, o esquecimento é a nossa alegria




a voz abre na manhã a sombra
de uma pausa, o cão leva o silêncio
na corrida, quem se ergue expõe
o vento rudimentar do abandono




recupera a palavra como um deus a extinguir-se
uma longa morte
a tua longa morte;
recupera a morte nos seus trâmites intensos:
os caminhos de um corpo no olhar de outro corpo
até à mão a encolher-se num movimento incerto:
sobre os lábios, contra os lábios, já não esconde
o nome do segredo;
recupera a voz que não reconheces,
a sua estranheza onde não reconheces a pergunta;
recupera o exílio, esse lugar
onde a palavra mais íntima se torna desmedida;
recupera a terra que perdeu o encontro:
o país que te ensinou a não procurar um rosto:
cada rosto é uma casa que não habitarás;
recupera o caminho que te afasta do regresso
e prolonga a ausência a que já deste um nome:
não vivas outra vez a voz que te sufoca;
recupera a palavra mais pobre: sombra
que uma criança persegue com a vela



Rui Nunes
Ofício De Vésperas
Relógio D'Água, 2007
a alegria: um pequeno desencanto de morte



Rui Nunes
Ofício De Vésperas
Relógio D'Água, 2007
a porta, esta é a porta, abria-se devagarinho para o terreiro, à
esquerda as barracas, à direita a lavandaria, a prisão, a enfer-
maria e o forno, depois de tantos anos, tantos, que fiquei per-
sonagem da minha história e recordo-me com uma estranheza
brutal que o tempo foi construindo, recordo o mcdonald´s, o
anúncio vermelho e amarelo e por baixo do M, a letras negras
e tão legíveis, Mauthausen 1 Km, uns americanos comiam ham-
búrgueres, abrigados na sombra do cartaz onde se anuncia de-
pois da palavra Mcdonald´s que Mauthausen fica a um quiló-
metro, e é tão perto Mauthausen, mas eu estou tão cansado, vim
a pé da estação, queria sentir o mesmo cansaço que sentira, os
pés a incharem-se nos sapatos por causa do calor, da humida-
de deste outono, parou de chover há pouco e alguns pingos
desprendem-se das árvores e rebentam na folha podre no chão,
um cai na aba do meu chapéu, num som de feltro a ensopar, os
cogumelos ladeiam o caminho com os seus umbráculos cheios
de gotículas, eu arranco-as com a bengala, paro para os arran-
car, afinal um quilómetro é tão longe, tudo é tão longe quando
a memória arrasta o presente para o passado e deixa à minha
volta um tempo raso, onde as casas nem habitadas são por fan-
tasmas e sombras, somente as janelas escancaradas para um
cheiro a cimento e a tinta, a madeira acabada de pintar, que é
o cheiro da desolação, afinal a desolação não é a morte, nem a
doença, mas um espaço à espera da sua habitação, como nos
subúrbios os prédios amparados por andaimes, essas casas que,
mesmo cheias de gente, parecem repelir os gestos e vozes, mu-
múrios e segredos, riso e cansaço, estou tão cansado, o presen-
te é um lugar onde me perco, nada me é mais estranho que os
jardins aninhados nos seus labirintos, os cães a ladrarem à mi-
nha passagem, as portas acabadas de fechar, o seu rancor mu-
do, as caras que através dos vidros olham a rua e me olham na
rua, sou uma coisa da rua, tenho a minha hora certa, sou um
invólucro onde se agarram as historias que inventam,
Que quer?
olho a mulher e sei que a pergunta é uma repetição, ela tem pa-
ra trás um escuro que teve tempo de se tornar acolhedor, uns
segundos são a pequena história deste escuro,
Que me quer?
Não a vim procurar minha senhora,
Então, procura quem?
este homem está perdido, olha em volta como se conheces-
se o lugar,
Conheço-o,
Conhece-me, minha senhora?
Vejo-o todos os dias de manhã, a descer a rua,
Esta rua não desce nem sobe, quer a senhora dizer que me vê
a afastar-me da casa,
afasto-me de todas as casas, quando dou por mim, já uma ca-
sa ficou para trás e eu volto-me para trás para ver a porta que
se acabou de fechar, embora eu nunca ouça fechar-se a porta,
sou tão distraído, sou tão distraído minha senhora que devo ter
confundido esta casa com outra, com a sua, é o mais provável,
com a minha, não, quem sabe? talvez queira entrar, ver como
vive, esperar que me convide para almoçar, sentar-me à sua
mesa, conversar com os seus filhos, beber o café a ouvir o mas-
sig schnell, da 2ª de hindermith, todas as vidas me fascinam, es-
sa intimidade que têm as vidas dos outros, dos que não conhe-
cemos, mas é tudo mentira, não é, minha senhora?, só porque
não são nossas essas vidas, só porque não as conhecemos, é
que as achamos fascinantes, como os lugares que nunca visi-
támos, ou os amantes que nos morreram antes do ódio,
Quer entrar?
Não
Quem é?
perguntam de dentro
É o homem de fato completo
Que é que ele quer?
Não sei
Manda-o embora
O meu nome, não lhe interessa sequer o meu nome?
Tanto me faz
Manda-o embora, já te disse
Feche a porta, minha senhora
Não sou capaz de a fechar enquanto estiver aí, a olhar-me
Fecho os olhos, vou fechar os olhos
Vá-se embora, peço-lhe
Então?
Não quer saber onde moro? Como é a minha casa? É uma ca-
sa vazia, num prédio onde ainda moram alguns velhos, tem mui-
ta luz, que entra pelas janelas e não encontra obstáculo, porque
ao longo dos anos me fui libertando de tudo, primeiro de gente
e depois de móveis, eram móveis grandes que me tinham deixa-
do, vieram de pessoa em pessoa até ficarem na minha casa, des-
polidos e velhos de gestos que eu desconhecia, de histórias, de
todas essas coisas que se agarram aos objectos, não coisas nem
factos fascinantes, mas vidas pobres que os empobreceram, há
objectos que se enriquecem com o tempo, outros porém estão
sempre a empobrecer-se, ficam estragados e bons para o ferro-
-velho, ou o adelo, onde os vão comprar aqueles que ainda con-
seguem dar-lhes mais pobreza, há assim uma lógica no mundo,
não é verdade minha senhora?, uma lógica que encerra a po-
breza na pobreza, por isso deitei fora todos os objectos, até as sa-
las ficarem do tamanho de um som, tornei os sons os movéis da
minha casa, hoje de manhã, por exemplo, ouvi o requiem de du-
ruflé, não é que eu goste assim tanto de duruflé, mas a soprano
é a kiri te kanawa e o barítono o siegmund nimsgern, não sei se
os conhece, quero dizer, se os costuma ouvir, não me responde,
está bem, já estou habituado a que não me respondam, ah, a
porta está fechada, nem a ouvi fechar-se, acontece-me com tan-
ta frequência estar frente a uma porta fechada, ou porque lhe
vou bater ou porque acabaram de me bater com ela na cara, às
vezes até é a minha porta que durante uns segundos não reco-
nheço, são uns segundos apenas em que eu, a porta, o mundo,
estamos para ali, como coisas que por acaso se encontraram
juntas, sem que se consiga saber a lógica de semelhante ajun-
tamento, já em criança me diziam: aéreo, és um aéreo, palavra
engraçada, esta, adivinham talvez o meu fascínio pelos sons,
todos os sons, o inverno para mim é por isso a melhor época, há
tantos sons no inverno, é a estação dos sons, sons que se mo-
vem, sons que se arrastam, sons parados, sons que se ampliam
e sons que se retraem, sons que morrem e sons que nascem, vou
de inverno em inverno, abandono um país quando a primavera
começa e chego a outro no princípio do inverno, e chego como
se chegasse a uma casa, a minha casa, entro no inverno como
quem entra numa sala acolhedora, e sento-me no inverno, que
é um jardim cheio de neve, com os seus corvos, está frio, come-
çou a esfriar e a porta fechada faz-me ainda mais frio,
lá em cima, atrás dos vidros da janela, a mulher espera que o
homem de fato completo se afaste da porta, ela sabe como ele
se há-de afastar, será de costas viradas para a sebe e a cabeça
voltada para cima, recuará afastando as gralhas numa fuga es-
pavorida até ao portão, e com a mão atrás das costas abrirá o
portão, e sairá para o passeio, e ficará parado no passeio, a
sombra de uma nuvem a passar por ele



Rui Nunes
Ouve-se sempre a distância numa voz
Relógio D´água, 2007
um homem caminha numa álea, entre as árvores, vestido de fa-
to completo, cinzento ou azul, e chapéu de feltro preto, vê-se
o vinco perfeito das calças, as costas do casaco sem uma ruga,
os punhos brancos da camisa, e a mão direita numa oscilação
fraca de pêndulo, é outono, um esquilo, numa corrida rente
ao chão, estaca de súbito, ergue-se nas patas traseiras e fica a
olhar o homem, a percorrê-lo com a sua paragem, uma rabana-
da de vento empurra as folhas secas, num áspero movimento:
encalham no pedrisco, avançam um salto, voltam a encalhar,
deslocam-se aos sacões, numa trajectória intermitente, até se
juntarem contra o tronco de uma faia, num monte poroso onde
circula o vento,
e que de repente explode:
as folhas voam num silêncio de vidro, volteiam no ar, sujam
a casca das faias ou o branco aguado dos seus troncos, um obus
rebentou, na álea serena do parque, e atirou os restos do outo-
no pela paisagem, uma gralha atravessa em voo a diagonal do
mundo,
tudo cai lentamente,
uma folha, a última, balouça a côncava secura, com uma for-
miga abrigada no seu côncavo, a nave vai, la nave va, em rota
mitigada pelo vento que a arrasta por escarpas, volutas, planos
inclinados, sem nunca virar, o homem segue-a com os olhos,
vê-a subir até à copa das árvores, confundir-se com ela, desa-
parecer um momento, recolher-se um momento no silêncio da
copa, e depois desprender-se dessa cor ferrugenta, para lhe
cair aos pés, ele baixa-se e agarra-a, fica com ela na palma da
mão, fremente, não a mão mas a folha, num estremecimento
de partida,
este homem perdeu-se, ou vê-se perdido,
não conhece o jardim, nem a casa por entre as árvores, não re-
conhece o céu, o cinzento esse céu, que não é mais do que um
espaço a abrir-se para nada, este homem não se lembra do nome
das árvores, nem o do pássaro negro que se lhe atravessou no ca-
minho, aos pulos, numa corrida, nem para onde vai nem de onde veio,
este homem sabe unicamente que tudo o que não sabe é um
imenso nome que o mata e, por isso, pára, interrompe a doença,
e vê,
os seus olhos têm a técnica cirúrgica do recorte, atentos à fo-
lha, aos rebordos encarquilhados, às placas circulares de fun-
gos, castanho sobre o amarelo torrado, às fissuras por onde ela
há-de abrir, romper-se, até ficar reduzida a nervuras, como a
pena de um pássaro ou os ossos da mão, ele segura-a pela bai-
nha, para que o vento a destrua, pedaço a pedaço, lhe arran-
que a forma de folha, a descarne, a desfolhe, até ao seu esqueleto,
fina espinha de peixe, e assim veja o tempo a construir-se, se
veja nesse tempo, contido na sua mão, entre os dedos, na for-
miga que ao longo do braço lhe traçou na sua caminhada uma
linha de cadáver, lhe desenha o envelhecer no corpo, o homem
sabe que a palavra enorme escondida se aproxima dele, corro-
siva, não um fantasma mas uma ameaça, em tudo aquilo que
vê se desenha o rigor dessa ameaça, tudo tem por detrás o mur-
múrio da monstruosa aproximação, tudo o rodeia, tudo se dá a
ver, a ouvir, a paisagem está cheia de ruído,
quer virar-se, porém não sabe para onde, quer descobrir a pa-
lavra que à sua volta o mundo parece dizer, quer pronunciá-la,
afastar o seu mal nessa pronunciação, quer falar, mas só há
coisas cegas, só há a maldade dos objectos, a sua nitidez é a sua
maldade,
eis o mundo um segundo depois de Deus o ter criado, segundo
imenso com o homem no seu centro, quando nomes e coisas
desfizeram já a sua absoluta intimidade,
ando: disse: por um mundo onde já não há a intimidade de
Deus, ando pelo relevo de uma frase que desconheço, isto, isto
: eis o nome que sei dar às coisas,
anda pela álea e a álea é uma repetição: há sempre um melro
negro que a atravessa aos saltos, e um esquilo em corrida,
há sempre Deus a escrever o texto que o homem percorre,
tu lês mas não compreendes, a formiga já está no teu ombro, so-
bre enchumaço, animal incerto na sua solidão, à tua frente as
folhas caem, é a avenida das faias, ou a dos castanheiros, como há
muitos anos a avenida das tílias, é a avenida das árvores a que
Deus se entretém a mudar o nome, embora seja sempre o mesmo
nome a embaciar-te os olhos, é a avenidas das tílias: diz ele: Lin-
den, unter den Linden, e levanta a perna, até ficar paralela ao
chão, fixa nesses passos de som cadenciado, passos de ganso, a
derrocada das tílias, folha a folha, secas, riscando o ar, abrem um
poço com a forma de folha, palminérveas: diz a criança na escola,
palminérveas: diz o homem: crenadas, obadas, fendidas, par-
tidas, mas as das tílias: interroga-se: como são as folhas das -
lias?, só o seu cheiro em queda vem do passado, será que havia
tílias? ou eram outras as árvores? os nomes são assim tão persis
tentes? O homem olha à sua volta e diz: faias, e emenda: casta-
nheiros, olha o pássaro negro aos pulos a atravessar a álea e diz:
melro, olha o animal de rabo comprido e tufado e diz: esquilo,
olha o cinzento sobre a sua cabeça e diz: céu, olha a casa, a sua
humidade branca, e diz: casa, olha o pedrisco e diz: calcário, olha
a formiga e diz: formiga, olha o lago que ainda não vira e diz: la-
go, olha as carpas e diz: carpas, olha a água e diz: água, olha o
limo e diz: limo, e emenda, algas, olha os nenúfares e diz: rã,
olha a rã e diz foge, ouve Franz e diz: mãe, e repete: mãe, e chora, ou-
ve o choro, ouve-se no choro e diz: eu choro, olha à sua volta e diz:
é tarde, e emenda: é de tarde, e acrescenta: é o fim da tarde,
é tão tarde,
Franz Franz onde está o teu irmão?
Não sei, talvez junto ao Traisen, a pescar,
A mulher aproxima-se dele: que estás aqui a fazer, parado, no
jardim?
Ele encolhe os ombros,
Ela repete: que estás aqui a fazer, parado, no jardim?
Ele chega-lhe a boca ao ouvido e murmura: aquilo é uma faia,
aquilo é um melro, aquilo é um esquilo, aquilo é um lago, aqui-
lo é um carpa, aquilo é o céu, aquilo é um charco, aquilo é um
nenúfar, aquilo é uma rã.
e abre os braços
e abre as mãos
e diz: és tu,



Rui Nunes
Ouve-se sempre a distância numa voz
Relógio D´água, 2007

Vésperas portuguesas

o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante

no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências



Rui Nunes
Ofício De Vésperas
Relógio D'Água, 2007
folhear o livro junto ao rio, no som da água
mergulhar o choro e antever
o resíduo da vociferação.
Talvez seja um povoamento esse grito,
quando a melodia reflui para o cansaço
e a mulher abre os olhos e esgota a sua casa,
talvez a criança desenhe com a faca a parede de cal
e chame dia à sombra da mão,
talvez o cerco esteja nestes ombros que recolhem
o peito, os braços e as pernas
na curva dos seus ossos
e abandonam o quarto a uma chicotada.
Talvez nada.
Talvez o girassol a redescobrir o dia



Rui Nunes
Ofício De Vésperas
Relógio D'Água, 2007

quem da pátria sai a si mesmo escapa?

- amas-me?
- amo-te.
ama-se sempre quando alguém nos pergunta.

...

às vezes, não suportamos, e em locais alugados ingerimos sem pudor um frasco de comprimidos. Semanas depois, o cheiro a podre denuncia-nos. Então, chamam a polícia, arrombam as portas, e vêem-nos: irreconhecíveis, esbatidas por vermes caridosos. Passou-se: dizem: e facilmente se esquecem

ele afasta a minha mão da testa: deixa-me em paz, chove em Portugal, não a água tépida dos sonhos, mas esta que mesmo em sonho, molha, chove sobre o sono, o hax, nada já tenho a fazer por estas bandas, o xaile de lã pela cabeça, ir-me-ei onde peçam sinas, a aldeia é transformada em vidente, habitante de uma terra de árvores ordeiras, de uma espécie única de pássaros

não queremos mais nada senão dormir junto a um gajo que queira dormir junto a nós: só isto: cedemos a um apelo interior: ouviu as vozes: as dos seus santos e santas: vai ao rei Luís e diz-lhe que salvarás a França, e aumentar-lhe-ás a glória, e dormirás nos acampamentos, com os soldados, porque não é só salvar o rei e a pátria mas também ter o seu gozosinho, que os ingleses, a morte na fogueira, ou trespassada de lanças, serei finda, por última visão o céu de Crécy ou de Rouen ou um céu qualquer, altíssimo, esbatido pela vida, minimizando-se por entre as viseiras e couraças ou enevoado pelo fumo da madeira húmida, crepitante. E os gritos da populaça. E o rei esquecendo-me. Abandonada também por minhas vozes. Talvez Santa Catarina se tenha perdido pelo cio que assopra em tempos de remorso e haja confundido águias e setas, gemidos e urzes

- Falas do céu com tanta desatenção!




Rui Runes
quem da pátria sai a si mesmo escapa?
Relógio d'Água, 1983

(gosto deste mundo que mais não é do que o arremedo de um mundo, desta luz que não se esbate nem cresce, deste tempo em que ninguém morre, desta história que começa quando entro na sala e acaba quando ela sai, fixa na ausência de tempo.
Posso ficar aqui toda a noite, de luzes acesas,posso pagar aos criados para ficarem aqui toda a noite, a servir clientes, a quem posso dar todas as refeições, posso prolongar tudo isto, esta paragem, posso fazer crescer um tempo parado,)
...
não me grites a dor ao ouvido minucioso, não tenho paciência para tragédias degradadas. deus e o sexo são os meus únicos transtornos. uivo para deus a oração sempre interrompida, amo a mão do pedreiro, não amo o pedreiro, mas os seus dedos, precisos como uma lixa, no meu ombro, ou entre as minhas pernas, a sua voz a dizer: que pele macia, quase uma seda. o desejo é uma descrição. quando bebo o chá, deitada, ele escorre-me pelo queixo, para a camisa de dormir, e expande-se como desamor. a menina não tem maneiras: diz-me o pedreiro. empobreço o chá assim vertido, sujo-me toda, os dedos peganhentos, o queixo peganhento, minha mãe diria: emporcalhas-te, e é isso, o meu corpo é um corpo de nódoas, o pedreiro olha-me, não me olha, observa-me, e diz: tens um grúmulo branco ao canto da boca. e cala-se. eu levo o dedo ao canto da boca e tiro o grúmulo branco. e ele diz: tens uma nódoa negra no ombro. e toca com o dedo na nódoa negra. e eu espero. e ele respira na espera, respira na espera, respira a espera. e, depois, a sua mão pousa-me na cabeça e começa a mover-se, para baixo, pelas costas e pernas, até aos pés:
- és tão pequenina.
eu digo:
- sou anã,
ele repete:
- és tão pequenina,
a mão está parada no meu pé, que se aconchega nela, e parece segurá-lo,



Rui Nunes
A boca na cinza
Relógio d'Água, 2003

«por vezes a tua cara torna-se nítida e insuportável. Outras vezes, esbate-se e com o esbatimento vem-me a resignação de te ter perdido. Às vezes, esqueço-te. Ou ficas escondido numa casa, num quadro, numa árvore, de onde ressurgirás. Um dia olharei o quadro, a casa, a árvore e lembrar-me-ei de ti. Mas cada vez haverá menos sítios onde te esconderes.

a tua face vem e atira-me sempre para o mesmo tempo, é uma face que o ódio esquece, anterior à deserção, a face de quem encontrou a primeira palavra, é essa que me olha nos sítios mais vulgares. Não te procuro: de repente; estás ali. Como uma arma. O límpido assassino.»



Rui Nunes
Ouve-se sempre a distância numa voz
Relógio D´Água, 2007

«dois tipos olham-se:
um diz: amo-te
outro diz: que sim
um chora com a tristeza dos livros que leu,
o outro pensa: que me faça um broche;
nus, dirigem-se para a janela e descobrem a abelha reduzida à quitina; um deles, com a unha, empurra o tule contra o vidro, e, no movimento descendente, um rasgão, elimina tanta fragilidade; no quarto translúcido, olhar é uma contabilidade rigorosa; no ecrã, a Lee Remick vai morrer em breve, o Humphrey Boggart murmura: quanto te amo, em inglês, claro: a palavra fim: um dos tipos arranja as unhas com uma lima, de vez enquando pára numa teimosa atenção a qualquer falha, com a língua tenta perceber asperezas mínimas que o polegar num movimento anterior não conseguiu detectar; satisfeito, muda de unha, retoma os rápidos gestos de vaivém, o outro beija-lhe o ombro, depois, a língua no sovaco e o cuspo pelo tronco, e um sente na cara os pêlos da barriga, ouve o ruído das tripas e um riso breve; todos os movimentos ficaram suspensos: o da lima na unha, o da face na pele, já não dizia amo-te, já não dizia nada, então?»



Rui Nunes
Mensageiro Diferido
Relógio D'Água, 2004

toda a vida estas caras se aproximam de mim
e apagam o sorriso:
são os mortos que recuperam os meus olhos para os seus olhos;
esqueci-lhes as histórias e posso visitá-los pela primeira vez:
o silêncio que os acompanha é a palavra que não chego a dizer,
um corpo qualquer a que me agarro
um corpo que soçobra desatento aos ténues fios do olhar.
É tão breve a pausa no sentido.
Depois, temos só o esquecimento
com as suas formigas que transportam
a água diligente do calor
no sol ambíguo das suas carapaças




Rui Nunes

Ofício De Vésperas
Relógio D'Água, 2007

Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado

17º dia

destruo os meus subúrbios e digo a solidão e crio mais solidão. Deitado na cama, olho o tecto e penso: é o mesmo de sempre, nem a minha infelicidade o transforma, é um pobre tecto de estuque com um fio eléctrico pendurado onde falta uma lâmpada. Na parede, à minha frente, há vestígios de uma estante que foi removida. Estou rodeado de sinais de falta e, como não tenho sono, eles tornam-se exorbitantes, não porque cresçam mas porque ficam cheios de fome

rezo, embora não seja crente. E faço por acreditar que o silêncio que se segue à minha prece é a voz de Deus. Até os enganos me confortam.

- há muitos por aqui, nesta época do ano
respondeu-te ele, e acrescentou:
- é o mês das cerejas e das ginjas

- dois whiskies de malte
- a marca do costume?
- a marca do costume.
e vimo-lo afastar-se pelo interior do vidro, pelo exterior

voz de pedro:
este é o tempo dos dramas omissos, um tempo simplificado pelo possível, escondemos da nossa voz o clamor dos mortos periféricos, não sabendo que a periferia nos é o coração, se os jovens ainda passeiam na margem dos rios, fazem-no curvados por uma doença capital que lhes contamina os gestos, ouvimos o som das explosões nas pedreiras, a atmosfera de cimento invade-nos com uma sede réptil e insinua-se-nos na saliva, transformando-a em lama, por isso gritamos uma dor plena de pó, moldada pelo depósito baço do pó, muitas vezes me foi este rio lugar de barcaças e cacilheiros, hoje, porém, é um animal acossado pelas margens, reduzido às letras que compõem um rio, tanto, que eu, próximo dele, me sinto estrangeiro, contraído contra o meu esqueleto pela sua estranheza, os automóveis passam por mim: casulos de música: e afastam-se, não deixando rastro desse som prisioneiro
tempo canibal



Rui Nunes
Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado
relógio d'Água, 1995