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Pouca Terra

aos meus pais, Carlos e Cidália

Estava certo, esse mundo,
como um mapa todo de linhas puras
figurando um grande delta
branco ao redor dos dedos.

Era de cor o lápis que mareava
minha tão próxima
longitude do berço. Como
devia ser, como
estava certo, muito pouco
ficava por encher:
a mão bastava para compreender
o avião de cor em fuga desordenada;
hoje acha-se aquém
de toda a luz para que foi criada.

Estava certo esse mundo,
estava certo o rio, o astronauta,
a casa primeira, a cosmogonia
da cidade, o mito da flor, tudo
o que não tardaria a chegar à mão
que agora escreve exilada
do caderno de desenhos.



Rui Lage
Berçário
Quasi Edições, 2004

céu aberto

Diz-se
que em certas noites
dorme no monte junto ao cavalo;
que bebe muito e cai pela terra
em redondo o pensamento,
que a sua cama não tem lençóis
e que a suportam quatro tijolos;
que nunca lava as escadas
e que nunca lava a roupa
embora permaneça preso ao ribeiro
muito depois
de as mulheres terem partido.

As árvores, que se saiba,
não se lavam
e dormem ao relento
encostadas ao cavalo do estio
(se assim não fosse não amaria
o que já não seriam árvores).



Rui Lage
Berçário
Quasi Edições, 2004

wong kar-wai

Como se perguntasse o teu
nome, e um eco de mim
respondesse
que não existes

e me apetecesse morrer
mesmo assim à tua porta.

Como se no banco de trás de um táxi
não seguisses comigo para a morte,
nem tivesses no meu colo pousada
a tua cabeça,
no teu rosto branco o batom aceso,
e o azul dos olhos como um espelho
debruçado sobre a noite
ou luz de navio perguntando por terra
mas passando ao largo.



Rui Lage
Revólver
quasi edições, 2006

o corvo e o barman

Morreria de sede
não fosse este fino
fontana fria:
entorná-lo é meu fado
até que um dia
lá vou pelas águas levado
que desgraça de pote
é caminho de riacho



ao cântaro da poesia
virá-lo não me é dado:
atiro-lhe pedras
suba-lhe o nível da água
mas o que vazio está
cheio de pedras fica
e só de pedras
com o tempo se aumenta.

Rui Lage
Corvo
Quasi edições, 2008

endurecer a casa

Cai o pano do sol
no palco das sepulturas.
Aos montes jacentes dão voltas
sebes e muros aluídos
guiando excursões do olhar
que vai da multidão reunida
às oliveiras mais antigas,
e destas, mergulhando,
às formigas.

Não está porém destinada ao sol
a cova, mas a ti, astro bem menor,
e antes da cova é preciso
não dar pretexto aos vermes,
endurecer a última casa,
vê-la em sonhos impenetrável,
sulcando segura as águas de um grande rio
contigo a bordo.

Rui Lage
Corvo
Quasi edições, 2008

caça grossa

Entopem o gargalo da toca
espetando o nariz, calcando
esquivo lagarto pateando
ossinhos de rato no Éden
de outra vida
enquanto das élficas orelhas
sacodem dejectos de sol:
duas raposas recém-nascidas.

Indiferentes ao milhafre
e à doninha,
em qualquer colo felizes
de qualquer leite beberiam.

Mas na aldeia,
numa porta de estábulo
imunda e carunchosa
o sangue secou no ruivo pêlo
e na materna cabeça a pólvora
onde a bala deu entrada.


Rui Lage
Corvo
Quasi Edições, 2008

valquírias

Escolhida por entre as falanges do lago
a luz
guarda para si a melhor parte do silêncio.

Deslizam da sombras das magnólias
como peixes traçando uma perdida
e perfeita linguagem,
trazem de longe, enquanto passam,
tempo que me segue nos seus rostos
e se muda nas casas
adormecidas de encontro ao lago.

As crianças olham-se desde os patos
deslumbradas como se ali não fosse
o seu mais perfeito lugar,
luxações de pólen
nos térreos tornozelos das mães
e noutro sítio a coberto
de antigas nuvens.

Está próxima a luz:
na promessa do gelo,
nas gáveas da montanha.

A superfície da terra
ondula nos afagos do lago como se a luz
me tivesse empurrado: e a luz
está pela borda - um olhar fecha-me a boca
com a fragrância de cabelos lavados,
a pele é uma cegueira muito antiga,
o susto de um voo picado - a luz
verte
desastradamente
o pensamento muda-me o corpo
para as águas profundas do lago.

Rui Lage
Berçário
Quasi Edições, 2004

persiana

Trespassa, furtiva, as persianas do quarto,
vem sondar o leito escuro da casa
no halo dos faróis que revela
a silhueta dos móveis,
e leva o sono contigo,
o sono teu inimigo,
aquele que parecia chegar
a cada silêncio na estrada.

Trespassa, furtiva, as persianas do quarto,
venho contando os carros lá fora,
a insónia é um estado apetecido
e transpirado:
se o sono vier, promete,
farás o possível
por mantê-lo afastado.



Rui Lage

Revólver
Quasi Edições, 2006