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Em suma

Um a um foram saindo de cena
os companheiros. Partiam, com a tarde,
para fins empobrecidos,
na rota dos eleitos para filhos e despesas.
As noites faziam-se livrescas,
estendiam sobre mim o seu império
de silêncios e desfalques.

Entretanto, engrossava o meu diário
de rasuras, de cálculos moídos,
partilhado por verrinas e recados
sem resposta. Bebia o desalento
por canecas de latão, corria
as persianas. É muito pouca sorte.

Os versos, com o tempo, tornavam-se mais longos,
cresciam para trás, para fora
dos cadernos, ocupavam a minha vida
tal a morte na semente de madeira.
Afeiçoava-me isso sim à solidão, cortava
o negativo dos afectos, protegido na cabeça
por um chapéu de feltro;
pois essas são as coisas e as coisas
que ontem nos pareciam boas
não existem.



José Miguel Silva
Vista para um Pátio seguido de Desordem
Relógio d'Água, 2003

Nove

Num bairro semi-fabril, não compensa o estatuto
de classe média baixa. Os primeiros patins da rua,
vão fazer-te cair. Os contrários fazem círculos
em torno dessas posses: tens que pedir desculpa
pelo jogo de monopólio, deixar que te roubem
as notas mais altas, as pequenas propriedades
de plástico sujo. Libertado das tuas diferenças,
só com má vontade te passam a bola. E, aos poucos,
tudo volta à mesma forja de revezes, diatribes, mau olhado.
Num bairro de cegos, depressa aprendemos a odiar a luz.



José Miguel Silva
Vista para um Pátio seguido de Desordem
Relógio d'Água, 2003

«Requiem por um desconhecido» - Claude Chabrol (1969)

Chamem-lhe arcaísmo, se quiserem,
mas eu penso que a vingança
ainda tem lugar no coração da justiça.
Quando o corpo é ofendido e perde sangue
aos borbotões, a lei é uma compressa
ineficaz, não estanca a dor que sentes.

Se te arrancam a mão direita, tu vais pôr-te,
com a esquerda, a coçar a cabeça?
Não vais. Há dívidas que só podem
ser cobradas por quem sofre.

Orestes, que não tinha, felizmente, advogado,
fez o que lhe competia.
Tivesse ele posto uma acção em tribunal
contra Clitemnestra e - quem sabe -
ainda hoje andaria por aí, de crânio na mão,
a soluçar como um pateta vindimado:
ser ou não ser, eis a questão.

Não. A lei não dá conta de todo o mal.
Às vezes é o sangue, por estranho que pareça,
o melhor detergente. Nisto me fundo
para reclamar de vós, juízes, a absolvição.



José Miguel Silva
Movimentos no Escuro
Relógio d'Água, 2005

«Contos da lua vaga» - Kenzo Mizoguchi (1953)

Nós, os homens, somos assim, abominamos
a realidade, a caverna do anonimato.
Quando as estrelas espreitam pelo colmo
do nosso telhado: não hesitamos:
deixamos para trás o barro das mulheres
e confundimos a vida com uma aventura.
As mulheres ficam à porta a chamar-nos
estúpidos. E porque nos conhecem,
temem o pior. O pior acontece,
pois nem todos somos feitos para a guerra.
Assim nos retalhamos, em combate
desigual, pois nós somos os homens,
gostamos de viagens, de jogos a doer.
A nós o medo não nos mete medo,
gostamos de ilusões. E se tudo
corre mal, se nem sorte nem valor,
morrer em campo aberto é bem melhor do que nada.



José Miguel Silva
Movimentos no Escuro
Relógio d'Água, 2004

A drowning

Vinte anos de porfia
para cem, duzentos versos
estimáveis, o fastio
dos aplausos, seis amigos,
quando minto, trinta euros
de chamadas por semestre.
Arrependido? Nem sequer.
Desapontado, se quiserem.

A sensação de ter quebrado
o último brinquedo.

José Miguel Silva
Walkmen
& etc, 2007

Não é tarde

O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes
eu fecho mais a porta.

Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro
funciona! Poderoso combustível
é o corpo. Acende deste lado.

Ainda não é tarde, foi agora anunciado
pela rádio, são dezoito e vinte e cinco.
Respira-nos, repara, a ilusão

de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despe
vai perdendo o nosso número de telefone.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
&etc, 2002

Não sei se são os trinta anos

Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado,
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
&etc, 2002

Visto de perto

Tu corres a meu lado
na direcção contrária.
Qual de nós irá chegar
primeiro à solidão



José Miguel Silva
O Sino de Areia
Gilgamesh, 1999