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A púrpura dos dias

falar-te-ei de como se erguem
em flor as sementes,
de como o luar pode desfazer
a solidão de um nome
e atirar-nos para o lugar das mãos.

ao longe, a púrpura dos dias,
do ar respirado, da vida
que não pára de bater
em cada grão de terra
- nas tuas mãos, o meu
coração de lã e o frio
que não mais te tocará
por ser possível ser-se feliz.



Vasco Gato
Um Mover de Mão
Assírio & Alvim, 2003

A prisão e paixão de Egon Schiele

A esta hora em que a noite é uma seringa partida. A esta hora em que os pulmões são de seda e o sangue circula muito devagar. Eu não estou.

Pode ser a chuva numa esplanada ou, ao invés, o carro que trava o tempo da primavera. Não importa.

A noite é uma especiaria que acende os corpos.

Há três dias que durmo desordenadamente. Transpiro e acordo e vejo casas que são desdobramentos da minha própria casa. A verdade é que preciso de ti para um poema. Preciso que te passeies por uma dessas casas, que te sentes, que te deites. Preciso olhar para ti durante 27 segundos.

A solidão é um serviço misterioso. Reunimo-nos para prestar contas do nosso desaparecimento e por vezes agarramos um braço como se pretendêssemos instalá-lo, de repente e para sempre, na nossa ternura.

Todos os meus silêncios são uma criança que espreita. Todas as minhas faltas são uma criança entusiasmada. Todos os meus poemas são crianças mudas que gesticulam.

Todos os dias saio para a decisão de um amor sem protagonista. Encosto-me às paragens de autocarro e aceno subitamente a alguém que passa. Por vezes retribuem-me o gesto e ficamos ambos sem saber se por graça, se por um escuro reduto de uma franqueza cada vez mais rara. Tens tempo para um estranho? A que horas me poderias dizer o teu nome? Conheço uma igreja que ardeu, conheço outra que é muito muito pequena. Escuta, no meio desse teu deserto, ao passar a caravana do luxo, será que és capaz de suplicar: água?

És capaz? És capaz ainda de suplicar?

Bebe, este poema actua sobre o nervo da alegria. Este poema é um cavalo de crina incendiada a ultrapassar a tarde. Nunca perceberás por que se move, para onde vai, de que se alimenta. Bebe, alguma vez estiveste ébrio no meio da tua ignorância?

Preciso de ti para um poema. Ofereço-te em troca o meu auto-retrato sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um corpo cheio de insónias, pele de galinha, súbitos arrepios, termómetros para novecentas febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis, fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos.

Não me visites. Não me visites agora. A noite deu-me uma filha. Tem cabelos verdes. Fiz-lhe um berço de papel. Parece uma estrela caída do invisível trapézio. Vai demorar muito tempo até reencontrar o equilíbrio. Tem pés muito pequenos. Dorme de dia, e à noite respira muito e não me larga a mão.

Sou um pintor. Trago sangue para os vossos olhos. Tenho artérias que se descosem e me cospem dentro de mim mesmo. Preciso de muita paciência, de todas as mulheres do mundo. Durmo sobre a cama profana da minha escuridão. Contagio e deixo-me contagiar pela peste dos bairros pequenos. Não suporto muita luz, não sei o que é uma avenida. Esquina, sou qualquer coisa que o espanto torce. Sou viciado no álcool dos corpos que se difundem. Bebo das vossas bocas o que não pode ser visto. Pinto para me esquecer do que não pode ser visto. Pinto com os materiais clandestinos do meu amor. Não projecto nada na minha tela. Eu sou a tela. Eu sou a luta das cores por um diafragma de beleza. Sou um pintor. Mereço morrer como pintor. Não mereço que me prendam. Mereço todas as minhas paixões. Mereço todas as minhas paixões.

Vi tudo. Não tudo, mas tudo o que me aconteceu. Garanto-te que prestei atenção e estou pronto para mais 47 anos de fita. Não quero rebobinar, quero atravessar os pomares da minha loucura terrena, colhendo frutos, marcando todas as árvores, com fogo, a ilegível assinatura da minha passagem.

Não é para decifrar! Não é para decifrar! É para se desfazer na boca, como açúcar, como vinho, como a erva lenta da infância.



Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc, 2005
Era apenas um livro. Teria forçosamente que ser um livro: a aparência era de livro, o comportamento era sem dúvida de livro. Todos sabiam, porque sempre fora assim, que mais um livro não traria nada de extraordinário: letras, vírgulas, alguma gramática. É isto um livro. Porém, quando abriram aquele livro, e era de facto um livro, notaram uma qualquer presença estranha, algo que não souberam definir. Fechavam-no, abriam-no. Olhavam atentamente a capa, interrogavam. Lançavam-no ao ar numa última tentativa de desmanchar o truque: mas ele caía como um livro, desprezando as suas páginas como todos os livros.

Sussurravam de uns para os outros: o que se passa com este livro? Trocavam olhares cúmplices quando entreviam num rosto alheio o efeito da mais breve leitura que fosse daquele livro. Os sintomas eram claros para quem já lera uma parte. Um tremor subtil na pele, um desajeitado modo de ter mãos, ora no bolso, ora na cara, ora rodando no ar, um passo levemente incerto, uma tensão nas sobrancelhas. Para quem não lera, porém, tudo corria calendariamente.

Os leitores daquele livro inquietante aproximavam-se, trocavam hipóteses de solução, procuravam desesperadamente calar o desconforto que a leitura lhes ia gradualmente instalando. As suas vidas pareciam irremediavelmente suspensas perante a urgência do fenómeno. Olhavam, liam: letras, vírgulas, gramática. Tudo aquilo ressoava na memória. Eu sei o que isto é!, diziam. Não existia nada de desconhecido naquele livro. Porém, revelava-se absolutamente incomparável. E nisto consistia o mistério. O olhar passava pelas palavras no mesmo gesto mecânico de sempre, da esquerda para a direita, atento às pausas, descendo suavemente a página. E, no entanto, assomava ao cimo desse olhar treinado uma sensação de tontura que depois alastrava por todo o corpo. O livro era insuportável, excessivo. Era preciso fechá-lo abruptamente para não se cair ao chão.

Mas por quê? Que subtil e raro poder circulava na normalidade daquele livro? Era isto que traziam para a rua. Alguns paravam subitamente no passeio, ou acordavam em sobressalto durante a noite, como se houvessem decifrado o problema. Escapava-se-lhes. Regressavam ao livro contrafeitos, mas num estado de profundo encantamento. Umas palavras mais, mentalizavam-se. Mas liam sempre mais do que podiam e a tontura assinalava-lhes de imediato a transgressão. Começavam a desenvolver um agudíssimo sentido dos detalhes. Viviam mais lentamente. Cuidavam do livro como se se tratasse de uma matéria preciosa, a mais preciosa. As suas vidas cresciam em intensidade.

Era um livro único, excepcional.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007

O teu corpo transpira o meu ópio. Não te afastes.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Vivi à queima-roupa todo o calendário. No relatório policial ficou declarada a minha inocência. Mas, de facto, eu estava lá.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
A única dignidade da vida é narrar-se. Ouvir-se nos anfiteatros. O resto é fome, violência e esperma.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Lou, somos dois continentes a boiar num tanque de pedra. O próprio espaço se agita com as nossas colisões. E no fundo da terra, como no fundo do mar, como no fundo das horas que caem, o nosso sinal é esta margem sem palavras, este cordão que atravessa simultaneamente a boca e a cintura dos animais - porque nós somos, Lou, o cofre e o improviso que o levanta, dois poços a darem eco da mesma água.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Estão aqui 37 graus. É um corpo. E ninguém se aproxima senão para recuar. Devorar. Ou ficar.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Veio de muito longe o homem que me pagou todas as dívidas na cidade. Tinha cabelo liso e não falámos muito. Eu estava calmo. Dormi uma última noite antes de partir. A última noite é para o homem que veio de muito longe poder afastar-se. A última noite, não tenhas ilusões, é para ficar a dever.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007

43

Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos.
Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, li-
nhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atra-
vessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da
devolução.

Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar tudo numa árvore.
Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda
a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a me-
dida exacta do meu desejo.

Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma
enorme quantidade de calor. Tocas-me?



Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc, 2005

Primeiros Socorros

A ferida por baixo da cicatriz
- quem cura?

Por vezes são estrelas que sobem
quando a água ocupa o espaço
e um brilho esquivo tropeça
no cansaço
do dia

No chão ainda morno
ardem pétalas sossegadamente
e há a melancolia de um pássaro

Na varanda esquecida
por trás de toda a magia da noite
(há tanta solidão em quem repara)
dura um homem que diz baixinho
assim quase para fora

A ferida por baixo da cicatriz
- quem cura?



Vasco Gato
Imo
Quasi Edições, 2003
Nunca se deixou fotografar. Quando te tocava, dirias que te revelava
o corpo, como se infundisse calor ou se pintasse a si mesmo no espa-
ço. Era esse o escândalo. Podia não existir, mas quando se aproxima-
va - nunca se deixou fotografar.

E havia um negócio de roupa: azul por vermelho. Era simples,
não envolvia cálculo. Vestiam-se e despiam-se e olhavam-se e subiam de-
pressa a torre de pedra porque era assim o seu desejo. Expunham-se
ao vento como velhas árvores de seda. Eram animais de temperatura,
animais de fome, real e urgente.

Nunca se deixou fotografar. E quando morrer, dirás que o viste. Dirás
apenas isso. Que o viste.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007

longe de ti

estive tão longe de ti
que não pensei sequer lembrar o teu nome
percorri distâncias escuras, estradas imóveis
onde circulava o peso sem cor do esquecimento
e se curvavam as pedras à boca do destino

vezes houve em que dormi sem estrelas
num vazio de astros que me congelava as veias
e me amortecia a vida em poços de água
que a vida não podia tocar - rondavam os lobos

e contava os dias, riscando a minha loucura
nas folhas secas do caminho, escondendo a réstia de sonho
entre as raízes ainda vibrantes das árvores rugosas
conhecia por vezes o movimento quase imperceptível
das grandes estações internas, o estalar da seiva,
o tambor duro onde vinha cantar a melancolia

a solidão assustava-me, queimava-me a pele
no vermelhíssimo lume das mãos dos mortos
quero dizer-te que não mais vi ternura
que os meus pés ganharam idade a um ritmo
que não pude conter, acompanhar, escrever-te

sim, fiz-me não te escrever
para que o meu corpo não ouvisse o vento
e as ondas fossem quebrar ao centro dos oceanos
para que uma palavra não pousasse no teu rosto
e levasse a luz dos teus olhos e a vida nos teus lábios

arranquei de mim a morada que eras tu
desisti dos pássaros, afundei barcos, lâminas,
apaguei o calor dos porões como se uma vela
pudesse perigosamente insistir na permanência
desse mundo que era a minha voz, éramos nós

éramos nós, choro
sinto no enrolar dos dedos o ínfimo do teu nome
a abertura impossível de uma janela de avelãs
as avelãs que nos escutavam (lembras-te?)
enquanto lá fora, fora de tudo, a neve
se abatia sobre o dorso antigo das nossas mães
sobre a dor vencida no embalo dos bebés

estive tão longe de ti
mas deixa que agora te nomeie entre as nuvens
e traga para dentro de mim a pintura das tuas pálpebras
o aroma que era o teu corpo nas manhãs a dois
deixa que venha morrer junto de ti
no ventre do amor que prometemos ao infinito



Vasco Gato,
Um Mover de Mão
Assírio & Alvim, 2000

32

Não apagues a tua boca agora. Quero desenhar-me rosa-dos-
__-ventos na vela do teu peito e sairmos de olhos fechados
__para a aventura sem âncoras de circumnavegação terrestre.

Neste quarto, as mãos perdem a razão. Neste quarto, as mãos
__são meramente mãos. Não apagues a tua boca agora.

É quente a noite dos nossos corpos. Por isso dormimos sobre
__a água. Por isso nos evaporamos como se uma canção an-
__tiga. Por isso a terra inteira.



Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc, 2005

29

Somos a carne de um fruto atordoado. Somos o dia aparatoso
nas escadas, depois navios ancorados carregados de bruma.
Bebemos o sangue dos poentes como animais incrédulos
de morrer.

Quando tens frio, risco-me como fósforo na tua pele ondu-
lada. E dá-se o acidente nas gavetas.

As tuas pernas afogam-se em poços de água, eu tenho os bra-
ços engessados numa parede violenta - porém beijamo-
-nos na boca lenta da madrugada.


O meu nome acordou povoado pelo teu nome.



Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc, 2005
Farei a noite, a vertigem dos corpos,
até que a exaltação atinja um lugar extremo
e tudo seja iniciado.
________________________A punção da noite
abrirá espaço para uma estrela. E a luz derramar-se-á.
O mundo será o meu oráculo.
________________________________Preciso começar-me.

___________ Vejo a nítida falésia de sombra estremecer
e estrelas entrarem pela cabeça do morto.
Ilumina-se o crânio, por dentro, e aos poucos
o corpo recomeça a fluir. Vejo o morto correr, nu,
cintilando pela noite. Corre de um instante impossível.
___________ Mas ouve: a borboleta que ressuscita os mortos
não deve ser cativada. É perigoso conter essas forças
vivas como pulsos. É perigosíssimo
o fogo.

_________________ Sei como é voluntária a encenação
da minha queda. Porque a cada grito no abismo corresponde
uma sabedoria no canto. Que entra na voz,
na voz que grita, na voz que canta - é um estranho
jogo de ecos este, escavando fundo na treva, ouro
que irrompe, musical. E é tão inesgotável esse
árduo filão do mistério.
_____________ É importante manter os obstáculos no caminho,
e fazer o caminho. Que seria do caminho senão os obstáculos,
senão uma prática de superação?

______________________Há um casa mais abaixo.
Desço, entro na câmara escura dessa casa, fecho a porta,
e revelo, revelo, não paro de revelar - o meu rosto.
_______ Porque quando sobreponho as imagens,
vejo acender-se a invisível malha do espaço, ardendo,
exponde os alicerces do tempo.

______________________ E o morto regressa
à visão. Reuniu os ventos e ameaça derrubar o céu.
Diz: não desistirei de exercer a minha ignorância,
preparar-me para outros saberes: não abdicarei
de uma vida copiosa - é um manifesto feroz.
_____________ Irei para a floresta ou para o deserto,
para um qualquer lugar inóspito onde possa
experimentar, aterrorizado, a pureza
da minha voz.
Há muito que desejo romper
este cordão umbilical, ampliar-me, e agitar
as esferas, os campos, as possibilidades
de transparecer um poder obscuro, terrível,
o poder da minha própria
morte.

____________Porque: que é uma coisa senão
o lento acordar da sua morte, das suas mortes?
Digo que cada coisa é um caminho para fora
de si mesma. Que são intermináveis
as coisas sucessivas.
____________Digo que a voz do morto soava assim
pelo corpo de dedos fulminados. Batia na perfeição,
como a cadência precipitada da chuva
- um som perturbador e insistente, belíssimo.
________ E eu estava aterrado, dominado por fúrias,
e fiz erguer o meu braço. Era um gesto,
um movimento deflagrado por
clara inocência.
___________E a sabedoria moveu-se
da boca para o sangue.



Vasco gato
Lúcifer
Alexandria, 2003
Passo o teu nome da minha boca para este lugar de papel.
E assim tu vens, menina do rio,
louca e desastrada, nessa tua canoa de silêncios,
a entrar no poema.
Mãos em existência felina

e respirando sem pausas. Voltas a cabeça para o lado
da luz e abre-se devagar o talento incendiado
do teu rosto.


Vasco Gato
47
Edição do autor, 2005
Falo de um homem que possuía livros de poemas. Foi talvez o único real leitor. Ele abria os livros, um livro. Escolhia um poema. Era um ritual misterioso. Porque ele raspava as letras da página, cuidadosamente, como para conservar a integridade do papel. Raspava e reunia os pedaços negros. Aquecia então água com o vagar próprio da vertigem. Uma estranha ciência de vapores.

A infusão sucedia: a escura substância do poema misturava-se mais e mais com o fervor da água, até ao ponto em que tudo aquilo era vivo. O homem bebia então o poema e o poema flutuava no sangue, atingindo todos os lugares do corpo, reclamando todos os lugares do corpo. Não era previsível o efeito do poema. Cada poema dissolvido, sorvido, feito homem, trazia consigo uma possibilidade própria. O homem crescia com o poema, crescia mais para si, mais para o poema.

o homem que possuía livros de poemas, possuía uma biblioteca em branco. Páginas e páginas de poemas arrancados sem vestígios, um crime perfeito. Era uma biblioteca poética. Uma biblioteca que podia arder.

Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Não se sai do abismo, aprende-se a sua linguagem.

Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007

45.

Estou mudo porque todas as palavras te escutam.


Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc