Secámos à mãe
seu leite de mãe
mas não desatámos
do cordão os nós
Infuso no corpo
algo se rebela
são as luas dela
que não brilham em nós
Nosso pai amámos
num amor sem termos
com dentes de leite
com um fio de voz
e se ele nos não queria
no quarto o degredo
era não sabermos
como nos traía
Quando os apanhámos
nos degraus do trono
a lutar de amor
depois mudos, quedos
a morte aflorou-nos
mas não enfiámos
na ficha de elec-
tricidade os dedos.
Fugiu-nos a mão
a forçar o sôfrego
o fluente túnel
onde ainda é cedo.
Pegamos num livro
vamos aprender
na ponta da língua
os novos dizeres,
o primeiro sangue
é que mete medo.
Luiza Neto Jorge
A Lume
Assírio & Alvim, 1989
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Recanto 18
Desses «em guerra» vos falo falo dos que me seguem
não os chamámos seguiram-nos
todos descremos e rimos por dinheiro não trocámos
projectados para a morte não traímos
Eu e ele somos a espaços
improváveis veículos (eu e vós)
mestres voadores numa convulsão de cigarros mestres
reptantes redemoinho meu ressaca viva oculto vinho
oculto amor
o nosso vedado o mundo tão exíguo e o dos outros
(luzes água planetas mecanismos ambíguos) mais
exíguo
Amamos o mundo (quem?) o tempo (qual?) a luz (quando?)
a treva (onde?) tudo (?) todos (?!)
trepidantes trémulos
com a ajuda mental de partículas
de merda
ou simples estados, frenesis, convulsivos, objectos,
alibis, a pique, patológicos,
risos, redundâncias, aços, lascados, alarmados,
conhecemos — além de nós, reais, —
os reis, os resíduos, o dente liliputiano
no sorriso do arcanjo.
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 1993
não os chamámos seguiram-nos
todos descremos e rimos por dinheiro não trocámos
projectados para a morte não traímos
Eu e ele somos a espaços
improváveis veículos (eu e vós)
mestres voadores numa convulsão de cigarros mestres
reptantes redemoinho meu ressaca viva oculto vinho
oculto amor
o nosso vedado o mundo tão exíguo e o dos outros
(luzes água planetas mecanismos ambíguos) mais
exíguo
Amamos o mundo (quem?) o tempo (qual?) a luz (quando?)
a treva (onde?) tudo (?) todos (?!)
trepidantes trémulos
com a ajuda mental de partículas
de merda
ou simples estados, frenesis, convulsivos, objectos,
alibis, a pique, patológicos,
risos, redundâncias, aços, lascados, alarmados,
conhecemos — além de nós, reais, —
os reis, os resíduos, o dente liliputiano
no sorriso do arcanjo.
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 1993
O POEMA (I)
Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme
Luiza Neto Jorge
Quinze Poetas Portugueses do Século XX
Assírio & Alvim, 2004
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme
Luiza Neto Jorge
Quinze Poetas Portugueses do Século XX
Assírio & Alvim, 2004
Difícil poema de amor
Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo dos amantes.
Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito
feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo
deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade.
Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial
quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas
da manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela.
As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas:
vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vazados.
Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos.
Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à
boca dos mais vivos. Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado.
Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio
é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me.
Não me tens amor
Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.
Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso
que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar.
Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro:
se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero.
O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu.
Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado,
pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento.
Desça com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam
sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação
em volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento.
Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado .
As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito.
Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me.
Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo
será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo
e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse?
Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros
é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura
que carrego sobre o corpo a horas e desoras
ostentando-a como objecto público sagrado purulento.
O odor que as pedras têm quando corpos.
O apocalipse de tudo quando amamos.
O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo.
Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde
ou simplesmente de noite despertos.
Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já.
Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos
e admiramos os monumentos e morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.
Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa.
Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.
Enterro o meu terror como um alfange na terra.
Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa
celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas
com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita
o meu nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Luiza Neto Jorge
Terra Imóvel
Portugália, 1964
Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito
feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo
deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade.
Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial
quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas
da manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela.
As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas:
vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vazados.
Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos.
Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à
boca dos mais vivos. Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado.
Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio
é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me.
Não me tens amor
Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.
Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso
que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar.
Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro:
se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero.
O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu.
Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado,
pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento.
Desça com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam
sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação
em volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento.
Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado .
As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito.
Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me.
Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo
será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo
e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse?
Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros
é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura
que carrego sobre o corpo a horas e desoras
ostentando-a como objecto público sagrado purulento.
O odor que as pedras têm quando corpos.
O apocalipse de tudo quando amamos.
O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo.
Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde
ou simplesmente de noite despertos.
Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já.
Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos
e admiramos os monumentos e morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.
Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa.
Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.
Enterro o meu terror como um alfange na terra.
Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa
celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas
com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita
o meu nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Luiza Neto Jorge
Terra Imóvel
Portugália, 1964
Luiza Neto Jorge

Luiza Neto Jorge nasceu em Lisboa, a 10 de Maio de 1939.
Após a separação dos pais, fica a viver com o pai, no então chamado Bairro das Colónias, aos Anjos, onde frequenta a escola primária. Há referências a este período no poema autobiográfico “Anos quarenta, os meus”: a proximidade do Castelo de São Jorge (“De eléctrico andava a correr meio mundo/subia a colina ao castelo-fantasma”), os problemas respiratórios (“[...] E sofria de asma//alma e ar reféns dentro do pulmão”), a instrução primária salazarista (“Salazar três vezes, no eco da aula”), os jogos de infância no Jardim dos Anjos (“E o meu coito quando jogava a apanhar/era nesse tronco do jardim dos anjos”), o fim da guerra (“acabou a guerra meu pai grita ‘Viva’”), os passeios até ao Terreiro do Paço (“Deflagram no rio golfinhos brinquedos//Já bate no cais das colunas uma/onda ultramarina onde singra um barco/pra cacilhas [...]”), as idas ao Cinema Lis, na Avenida Almirante Reis (“No cinema lis luz o projector/e o FIM através do tempo retine”).
A seguir ao falecimento do pai, passa a viver com a mãe e o irmão, na Rua da Misericórdia, nº 17 – 4º Esq., que seria a sua residência até ao fim da vida (a Rua do Mundo, que menciona no título de um poema de A Lume, utilizando a designação que a artéria anteriormente tivera, na primeira república, em referência a um jornal com esse nome).
Depois de um período de doença, que levaria a internamento hospitalar, frequenta o Externato Feminino Francês, situado na Rua do Salitre, onde completa os estudos liceais, indo fazer o exame do sétimo ano ao Liceu D. João de Castro; os primeiros anos, fizera-os no Liceu Dona Filipa de Lencastre, no Arco do Cego.
Em Outubro de 1957, ingressa no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa, que seguiria até 1961, quando o interrompe para ir leccionar no Liceu de Faro, no ano lectivo de 1961-1962. Nessa cidade vive com António Barahona, com quem, entretanto, casara, e fortalece laços de amizade e convívio assíduo com António Ramos Rosa, Casimiro de Brito e José Afonso, este último professor na Escola Comercial e Industrial de Faro.
Em 1960 sai na colecção A Palavra, de Faro, o seu primeiro conjunto de poemas, a plaquette A Noite Vertebrada, e, no ano seguinte, participa em Poesia 61, com Quarta Dimensão. Por altura da saída desta publicação, declara ao Diário de Lisboa (25 de Maio de 1961): “A moderna poesia ocidental tem raízes bastante fundas no surrealismo. [...] Parece-me que, entre nós, o surrealismo ainda terá a sua razão de ser – como total destruição de cânones bafientos, como reacção a um ambiente social rígido. Depois será talvez mais fácil, mais possível, a total reconstrução, formas e ideias novas.”
A partir dos finais de 1962, na sequência do seu divórcio de António Barahona, passa a viver quase permanentemente em Paris, onde exerce diversas profissões, entre as quais a de empregada de livraria. Publica, em 1964, 1966 e 1969, respectivamente, os livros Terra Imóvel, O Seu a Seu Tempo e Dezanove Recantos. A propósito deste último livro, fala de “uma revolta das palavras (...) apelando para um novo discurso” (A Capital, 16 de Abril de 1969). Regressa definitivamente de Paris em 1970, passando a dedicar-se com regularidade ao trabalho de tradução, quer para casas editoras, quer para companhias teatrais. Escreve os diálogos de vários filmes portugueses, ou neles colabora. Quer como tradutora, quer como autora de textos para cinema, quer ainda como adaptadora para teatro (O Fatalista de Diderot, espectáculo criado por Osório Mateus, em 1978), granjeia um enorme prestígio, pela reconhecida qualidade excepcional do seu trabalho.
Casa com Manuel João Gomes, de quem terá o seu filho único, Dinis, nascido em 1973.
Em 1973, publica uma recolha de toda a sua poesia, intitulada Os Sítios Sitiados, na qual inclui algumas secções inéditas e o poema, que tivera já uma edição autónoma, ilustrada pelo pintor Jorge Martins, O Ciclópico Acto (1972).
No início da década de 80 é produzido para a RTP (série Artes e Letras) e realizado por João Roque um filme de cerca de quinze minutos, em que Luiza Neto Jorge é entrevistada e lê o poema “Fractura”, escrito em 1980 e dedicado ao pintor José Escada, recentemente falecido.
A partir de 1984, surgem alguns poemas em revistas, nomeadamente na Colóquio/Letras, nºs. 78 (Março de 1984) e 97 (Maio-Junho de 1987), e Pravda nº 6 (1988), onde aparece, pela primeira vez, com incorrecções no 1º verso da 2ª estrofe, o poema “Minibiografia”.
Depois de mais de dez anos sem publicar nenhum livro, edita, em 1984, em circuito privado, um livro artesanal, constituído por manuscritos policopiados e intitulado 11 Poemas, com onze desenhos de Jorge Martins, de que foram tirados 100 exemplares.
A sua doença respiratória crónica agrava-se seriamente, fazendo-a depender do consumo de oxigénio durante um número cada vez maior de horas e obrigando a vários internamentos no Hospital Pulido Valente. Vem a morrer, a 23 de Fevereiro de 1989, no Hospital Curry Cabral, para onde fora transferida.
Em Maio do mesmo ano, é publicado o livro póstumo A Lume, que deixara ordenado, mas iria exigir uma difícil fixação do texto, devido às inúmeras emendas e rasuras existentes no original, trabalho realizado por Manuel João Gomes.
Em 1993 sai, em edição organizada por Fernando Cabral Martins, o volume Poesia, onde se encontra reunida toda a sua obra poética (Assírio & Alvim).
Biografia elaborada por Gastão Cruz
_____________
Obra publicada:A Noite Vertebrada, Colecção “A Palavra”, Faro, 1960
Quarta Dimensão, Poesia 61, Faro, 1961
Terra Imóvel, Portugália Editora, Lisboa, 1964
O Seu a Seu Tempo, Ulisseia, Lisboa, 1966
Dezanove Recantos, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1969
O Ciclópico Acto (poema para livro-objecto de Jorge Martins), Livraria-Galeria 111, Lisboa, 1972
Os Sítios Sitiados, Plátano Editora, Lisboa, 1973 (inclui todos os livros anteriores, revistos, e partes inéditas)
11 Poemas (Silves, 1983), edição privada em fotocópias, Lisboa, 1984
A Lume, Assírio & Alvim, Lisboa, 1989
Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 1993
Como tradutora deixou uma obra inigualável, nos domínios da poesia, da ficção e do teatro, abrangendo autores como Céline - Morte a Crédito valeu-lhe o prémio de tradução do PEN Clube -, Sade, Goethe (o Fausto), Verlaine, Marguerite Yourcenar, Jean Genet, Witold Gombrowicz, Apollinaire, Karl Valentim, Garcia Lorca, Ionesco, Boris Vian, Oscar Panizza, entre outros.
Fez adaptações de textos para teatro (Diderot, etc.) e colaborou com alguns cineastas, tendo escrito diálogos para filmes de Paulo Rocha e Solveig Nordlund, o argumentos de Os Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos (1975) e assistência literária em Relação Fiel e Verdadeira, de Margarida Gil (1989).
As casas
I
As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir
Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios
As casas fluem de noite
sob a maré dos rios
São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas
Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas
II
Prometeu ser virgem toda a vida
Desceu persianas sobre os olhos
alimentou-se de aranhas
humidades
raios de sol oblíquos
Quando lhe tocam quereria fugir
se abriam uma porta
escondia o sexo
Ruiu num espasmo de verão
molhada por um sol masculino
V
Louca como era a da esquina
recebia gente a qualquer hora
Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 2001
As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir
Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios
As casas fluem de noite
sob a maré dos rios
São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas
Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas
II
Prometeu ser virgem toda a vida
Desceu persianas sobre os olhos
alimentou-se de aranhas
humidades
raios de sol oblíquos
Quando lhe tocam quereria fugir
se abriam uma porta
escondia o sexo
Ruiu num espasmo de verão
molhada por um sol masculino
V
Louca como era a da esquina
recebia gente a qualquer hora
Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 2001
Mulheres de Henry Moore nos jardins
O cheiro da chuva inquinou os jardins
mulheres de Henry Moore sorvem os ares.
E tu alvejas-me, filho, camuflado
na recôncava brandura desses seres.
“Morta! estás morta!” rejubilas.
Entre os mágicos projécteis à deriva,
já crisálidas, já arcas no dilúvio,
pedem paz elas num sossegado corpo
com a terra, seus regos, suas relvas.
Naves nossas de regresso ao solo?
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 2001
mulheres de Henry Moore sorvem os ares.
E tu alvejas-me, filho, camuflado
na recôncava brandura desses seres.
“Morta! estás morta!” rejubilas.
Entre os mágicos projécteis à deriva,
já crisálidas, já arcas no dilúvio,
pedem paz elas num sossegado corpo
com a terra, seus regos, suas relvas.
Naves nossas de regresso ao solo?
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 2001
A magnólia
A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor
Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 2001
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor
Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 2001
O poema ensina a cair
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
Fábula
O animal entende-se:
tem cascos põe-os a render
tem pele aquece
fecha-se nos olhos para adormecer
tudo quanto lembra esquece
Dispende-se.
Permanece.
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 1993
tem cascos põe-os a render
tem pele aquece
fecha-se nos olhos para adormecer
tudo quanto lembra esquece
Dispende-se.
Permanece.
Luiza Neto Jorge
Poesia (1960-1989)
Assírio & Alvim, 1993
A casa do mundo
Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
Luzindo cheguei à porta
Interrompo os objetos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
É a casa do mundo:
desaparece em seguida
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
Luzindo cheguei à porta
Interrompo os objetos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
É a casa do mundo:
desaparece em seguida
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
A cabeça em ambulância
Há feridas cíclicas há violentos voos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã
ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos
ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta
quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã
ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos
ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta
quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
A divisibilidade: a invisibilidade a dois
A mulher divide-se em gestos particulares
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só poeta o diz.
a mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.
dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.
A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação
Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-a ainda.
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só poeta o diz.
a mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.
dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.
A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação
Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-a ainda.
Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
Assírio & Alvim, 2001
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