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É isto: a noite de manhã
Tu levantas-te

Manhã e noite não se vêem ao espelho
antes o estilhaçam para dentro
desencontram-se interminavelmente

mas ouvem-se uma à outra entre as salas da casa

Tu estás súbita ali na esquina do corredor
sinto por momentos a tua cara negra
e a imensidão do teu corpo anoitecido

passas-me a manhã devagar
de mão a mão
como um mapa fosforescente

onde por certo íamos morrer


Manuel Gusmão
Mapas o Assombro a Sombra
Editorial Caminho, 1996

A terceira manhã II

É de novo uma manhã do mundo: Dormia leve no sono
e sente que te levantaste. Procura-te e estás ali na varanda
da frente. Está frio e dizes que tens calor.
Fumamos contra o negro que reflui muito lento.
O estarmos ali os dois é um vago som de um rio entre nós.
Até que quase de súbito se expande um branco baço –
é a névoa do dia que começa. Apagam-se as luzes de presença
depois os candeeiros na rua. O céu, a montanha, o rio
e a ruína que a todos interrompe são apenas tons
de um branco que fosse uma imensa paz ou
uma morte quase
quase já reconhecida.

Pássaros e gatos povoam o pequeno mundo de aloendros,
palmeiras e silvas, cujas cores escrevem a névoa branca
que as apaga esquece e escuta.
Aquele procura alguma coisa perto da sebe que guarda a ruína.

Entre a febre e o frio somos também nós que nascemos?
ou estamos já morrendo?



Manuel Gusmão
Teatros do Tempo
Editorial Caminho, 2001

A velocidade da luz III

Estes corpos que somos são estranhas
invenções delirantes: tu não tens rodas e contudo
rodaste como se uma hélice te elevasse
só de um lado, te aspirasse até um outro estrato
aéreo, ou como se tu própria, folha aérea,
folheasses o ar e o mundo estremecesse
fora dos eixos.

Isso imprime-se nas areias do cérebro.

Depois, viesse um vento
e desfaria as dunas desse mapa:
a impressão ondula, muda de lugar, mas
resiste. É uma fotografia desfocada
uma tatuagem a outra sobreposta
uma cicatriz que esqueceu a ferida.

Interrompe-se aqui e ali
deixa de ser uma linha fina, um risco
no mundo, para ser uma corda que se entrança
e entrança o mundo.
Há qualquer coisa de movente fixo:
por mais que o tentes, o programa não deixa
que se apague toda e para sempre.
Desligas a máquina, mas o sulco permanece
no écran. Escreves-lhe em cima:
não desaparece, mas troca automática
mente algumas letras;
Encharcas-te em álcool, tabaco e comprimidos
mas a coisa insiste movida pelo fluxo
e refluxo das imagens, das águas, das areias, das sombras.



Manuel Gusmão
Teatros do Tempo
Editorial Caminho, 2001

Variações do branco

Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas planetárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata - uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fome as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve -
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia dos simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá



Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004

Um alphabeto de 1972

a
da mesa lavado o mar por cima o actor vê
através da janela o início das coisas mede o lado branco
das árvores no filme diz-põe os instrumentos intensos que
e atrás dele toda a casa equilibra o seu ruído
com o do mar em frente fora voando



b
o coração de vidro cerca a casa que olha o actor
por entre as suas veias de luz estende as mãos sobre
a madeira do dia e escuta

por cima da mesa
entre a janela e as coisas
um vulcão branco deflagra



c
o mar vem á altura das árvores que se inclinam
para dentro da casa o olhar de dentro para
fora do filme um touro com mil olhos bocas orelhas
vivo
fuzila os mortos



d
por dentro dos pulmões a água sobe como
por dentro das árvores invertidas numa fotografia
oscilando




e
as janelas revelam o actor enquanto o papel vibra
enrolando-se da chama até à cinza
da cinza até à voz maior chama
escrito no vento escrito na neve « tu escreves» fabricam
os operámos que batem no ar com os martelos
a ossatura minuciosa do mar




f
uma escrita enérgica começa a fazer mesa
dúplice e firme contudo




g
enquanto em frente às janelas a deflagração
mede o actor
que dividido se inclina com as árvores e respira
com os pulmões em fogo escreve ele
enquanto a casa oscila e
alguém devora o sexo que brilha que
brilha




h
os martelos batem nela a mesa do mar
cresce contra as janelas e o actor deitado sobre
é atravessado por tiros muitos muitas e muitas vezes
o coração deflagra
a mesa sobe até todo o horizonte




i
de todos os lados as coisas olham o actor com
as suas mãos extensas e intensas enquanto
os martelos lhe batem força




j
e ele corre
de uma personagem a outra
____Agata tinha os olhos cor de ágata
____entre dor e o nada prefiro a dor
____Passamos agora à edificação do Estado Socialista
ao longo da fronteira




k
a escrita mastiga tritura as coisas do filme
a orquestra cai contra a casa incendiada e canta
os expropriadores serão expropriados
o céu do vulcão beija a pequena língua




l
a mesa bate-lhe na boca
através de muitos anos o actor vem caindo
sobre o palco como um pequeno fogo inicial
transformando-se




m
as armas soam então e nos espelhos os exércitos
vêm avançando e o império obscurecida
mente estremece
perante o ódio necessário livre




n
o mar brilha no sangue do actor por terra
e as coisas começam a surgir com uma alegria
opaca e inconquistável




o
quem escreve transforma-se a _____morte
como um peixe voraz verdadeiro nome voz verdadeira
renasce
pela mão que devora cresce




p
alguém se agira no limite do filme no quarto
alguém acende a luz: a insurreição e a guerra
acometem a metrópole



q
enquanto não____ tu
choras
com força____ do outro lado do mar
longamente
tu voas recuas na casa cais até ao mar
tu avanças sobes na casa tropeças cais até à hora da tua morte




r
de um extremo ao outro
o ocidente deita-se de lado o seu espírito baba-se
o actor voa contra
o filme____ escreve



s
é o actor vêem___ o actor escreve




t
os operários batem o chão da sala e levantam
a mesa o mar: fazem o filme
dispõem as árvores abrem a janela
na escrita invertidos como na fotografia




u
a respiração ofegante do actor dividido
pelo brilho do espelho repete-se
na imagem das ruas o estrado com degraus
mão que porventura uma cortina esconde
o pano corrido o palco já montado
entre duas águas
a página




v
onde ele finge o teu olhar
que mil vezes irradia sem centro do sol desfeito
em mil letras mil ondas mil árvores




w
a página
onde se compõe e decompõe acende
apaga aparece e desaparece veemente apaixonada
mente
morto como o membro de Deus
o auctor que vive




x
trabalham os martelos por dentro da página
que oscila__________ fazem
como uma insurreição surda e longínqua
para lá do mar para cá do mar
a toda a volta e
sobre a mesa a tua cabeça avança tu
por entre os joelhos afastados da mulher




y
o mar sobe até á boca do vulcão o esperma
alastra sobre a mesa a casa deflagra o filme parte-se
os martelos fazem com força o cérebro do auctor
e as coisas do dia põem-se a falar com contentamento grande




z
este é um lugar da história: o alphabeto



Manuel Gusmão
Dois sóis, a rosa - A arquitectura do mundo
Editorial Caminho, 1990

As posições do leitor

1

O leitor está cego: a luz cai sobre o olhar: as coisas vão nascendo minuciosas despertas e límpidas, no passado. Na página, as letras vibravam e uma ausência brilhava como um clarão branco que chegava aos olhos e os olhos eram uma parede de luz intransponível. Ouviam, tacteavam.

a luz cai... contra o olhar...; como o dia se fazia abria-se o mundo: tu. A neve espalhava-se no cérebro do leitor, pelas suas árvores imóveis como na fotografia. Vê, dizia. - Isto é um livro: eu sei, pensava ele humildemente; um dia li um livro; contava uma história: passava-se no México e havia muito calor, a noite ia caindo sobre a terra, descendo pela colina até à cidade, até ás ruínas. Até ao rio. Como era inverosímil o que tinha acontecido não passara ainda um ano...

O leitor ia virando as páginas que muito lentamente ondulavam; estava cego e agarrava o livro num esforço paciente. Algures como no passado, branca sobre a luz branca, uma letra ardia: os contornos hesitantes de um A antigo, pintado, um quarto do sol, a secção de um disco girando sobre si mesmo. Um simulacro. Algures, então, como no futuro, o leitor está cego.


2

Nessa casa onde com setas pintadas de vermelho o teu quarto de menina foi percorrido em quadro, sentada na sala pequena, já quase na penumbra da tarde que decaí, tu lês com lentidão, precipitada e presa, de medo. Mesmo que mais tarde não saibas dizer o nome do livro, poderás mentir e inventá-lo, e estará certo para que tudo possa ser firme, mais fixo, como se tudo pudesse ficar numa fotografia. Ou, então, exasperada, procurarás lembrar-te, sabendo que essa demora falha inevitavelmente qualquer coisa, mas tudo ficará assim movediço e errático, como se para provar que essa fotografia era mentira. Enquanto lês, sentes o peso e a espera da casa - irás anos depois ler a maçã no escuro - como se estivesses prestes a enlouquecer. Sentes a cor da casa, a força guardada dos móveis, os ruídos da cozinha para lá da esquina do corredor, o ruído que não podes ouvir do relógio de parede, a experiente aceitação com que a jarra poisa na coberta de veludo, com que as cortinas defendem a janela, com que as roupas e as loiças se mantêm nos armários, com que os livros se encostam e não deslizam (deslizarão) na estante, com que a lingueta da fechadura da porta da rua espera ser accionada. Tudo te atravessa com a perfeição adolescente, uma forma vertiginosa e irradiante do medo, para se te gravar no cérebro e na pele, escrevendo insidiosa e raivosamente a tua história, que tu não sabes qual será no futuro, que de todo não imaginas, mas que poderás talvez oculta e obstinadamente sonhar, mais do que isso, conhecerás como inexoravelmente viva (:assim a profetizo). Isso ficará escrito: essa hora da casa, essa maneira de medir o tempo no livro que lês, essa maneira de desejar que não aconteça o que há-de acontecer; mas outros livros, outras horas virão, outros capítulos dessa história e dessa escrita hão-de vir, lentos e vertiginosos, implacáveis e exaltantes. Tudo se construirá e destruirá, tudo coexistirá numa sucessão de capítulos onde os nomes dos teus povos andarão de trás para diante, de diante para trás, sublinhando, escrevendo em itálico, abrindo parênteses, sempre abrindo a ameaça, com veemente entrega à fascinação que magoa e exalta, à alegria e à desatada miséria. Sem o pensares talvez, mas vais de qualquer modo escrevendo sobre as frases que lês o medo e o ódio, a escolha. Vais sabendo os minutos e os segundos que faltam para ouvires ainda na rua os passos que reconhecerás querendo alterar a hora, querendo que a hora passe e já a porta se tenha aberto, e


3

Figura luminosa no meio da noite, o leitor irradia pela sala a aventura do livro. Incandesce. O leitor ama. O seu nome, o seu amor ecoa nas sílabas imóveis da frase que os seus olhos perseguem. As letras da sua história rolam arrastadas pelas frases do livro. Rolam como de um rio águas e populações, chocando-se, depositando-se em movimento lento no leito dessas frases. Conquistam um sentido heróico e falso.

O leitor aprende o que não sabe e sabe essa luz que inicia o seu nascimento desde o fogo antigo até ao negro definitivo destas letras. O olhar ouve o que alguém escreve, silencioso e malevolente, disciplinadamente edificando essa ciência errática agora sua. O leitor abre e fecha como uma janela, não cessa de se abrir na respiração dessa luz emprestada, cresce como uma árvore fronteira ao quarto, no jardim nocturno,

estende os ramos através da alma do escritor, esse sangue opaco que não seca, essa promessa inadiável que não se cumpre. E é uma chama. O leitor vacila, e então os actores atropelam-se nessa cabeça cansada e erguida com orgulho, desfazendo-se na luz que é demasiada para o dia.

Longe,
pede perdão, comovidamente, sôfrego e perdido,
sobre o teu corpo como um rio fechado.


4

Em plena biblioteca, ouvindo os cavalos numa lenta invasão, o leitor redobra de atenção; procura estes anos, o som durante muitos anos através das areias escrito: a vós que fostes uma história, que antes vos alimentastes das palavras que entretanto sedimentaram, que hoje aqui se rasgam e se agitam, de novo, outros, os mesmos movimentos compõem; estas palavras que vos falam a essas reacendem, um fogo ínvio, desejando-as essas e diferentes: esta é a mesma e outra história; o que se transforma não cessa
de ser escrito.

Mas neste mar que o vidro contém alguém fala, guardando as ondas inúmeras, quietas e amargas, sem temor ouvindo a invasão. Um bibliotecário sem nome alegremente caindo sobre estas praias velhíssimas, ou passando a fronteira, vem gritando louco de Espanha. Sempre o som e a fúria, os focinhos lavados de sangue,

Em plena biblioteca, os livros cantam, os cavalos invadem, o jardim estremece, as laranjas movem na alegria o frio de janeiro, e a morte vibra alacre pelas várias figuras do leitor debruçadas pelos múltiplos lagos dos dias e das noites, subidas a escadotes, uivando a guerra, correndo pelas mesas num tropel apaixonado, profundamente adormecidas para lá das de janelas altas
e altas.


5

O leitor, fechado no parênteses, lê o capítulo em branco, a respiração da cidade submarina de onde os rios se precipitam e se cruzam desviados aqui, obedecendo contudo às margens que os contêm, obedecendo por quanto tempo, por quanto tempo ainda, a esse lugar irónico onde as mãos do leitor procuram abrir a sua própria história dividida vindo.

Como se olhando vigilantemente a porta levantasse a tábua do chão e buscasse os despojos do crime, o dinheiro e o relógio e a arma, e depois desistisse de cavar sob a casa para em equilíbrio difícil sobre o chão correr vertiginosamente para essas marcas onde o futuro já se marca; para o futuro! para o futuro!

Estas marcas e, contudo, ainda tudo é indeciso; o leitor tem ainda duas mãos enormes que crescem percorrendo o que o espera e não espera, fazendo isto e aquilo, porque algures por essa diferença que pulsa no parênteses poderá passar isso, sempre a caminho do fim do pré-história. Asfixiado, foge e não foge, oscila e uiva, afasta e aproxima as fronteiras, folhei-as e dobra-as umas sobre as outras, e assim as frases e o país rolam, alterna-se as suas várias camadas, revolucionam-se os fósseis, as estrelas mortas, as raízes, e entretanto o parênteses vai pulsando, dilatando-se e diminuindo, acendendo-se como um coração, desejo que se adia e adia o leitor.


6

O leitor voa letra a letra, do tempo para o tempo. «Voa outro», citando falsamente aquilo que lê:

isto aqui sou eu a sair de casa em 1971;

aqui entro na sala do restaurante, majestosamente, as portas a baterem, as abas do casaco longo a baterem, os cabelos longos a baterem;

aqui sou eu na infância e quem vai entrar é o meu pai com o seu amor errado;

«aqui és tu que falas»; - percebe o leitor que tudo se mistura e é de vários lados que fala, que soam os disparos. Porque sempre móvel o hipotético ponto de coincidência. E contudo é como se o ruído do motor, a velocidade de deslocação do corpo em movimento, a velocidade da luz e a metamorfose descontínua do território sobrevoado, se tornassem de uma nitidez evidente,

como a do número finito das gotas de água de um rio em flashes sobrepostos se
despenhasse


7

O leitor parte para longes terras: a princípio, apenas deriva lentamente, move-se um pouco por entre, por sobre as frases; depois, sem que talvez o reconheça logo, há um salto, como se o avião tivesse caído num poço de ar (o avião para Los Angeles, pág. 11). E é então, propriamente a partida, o início da viagem, levado o leitor daquela terra firme, onde no entanto patinava como se movediça fosse, movediça.
Para longe parte o leitor e talvez o longe seja ainda aqui, porque já o regresso agora a outro lugar, outro tempo, parece impossível, e o longe tão íntimo a esta terra firme-movediça por sobre a qual a lanugem das nuvens concentra água e a luz, essa terra,

por onde os tios se erguem até ao brilho dos teus olhos que a outros se sucedem, não os mesmos, mas confundidos na passagem da paixão que os faz;

por onde as árvores sobem e depois descem as colinas desde o palácio de Maximiliano até à Portela do Francês, desde Turquel, onde arbitrariamente se pode situar uma espécie de começo, até à definição do inferno por Carlota,

por onde o luar o luar o luar não deixa distinguir as coisas, mas deixa contudo perceber a chama, uma chama;

por onde a terra firme-movediça e o fogo correm ao encontro um do outro, como um maremoto, como a tromba de água que o leitor é, como é os estilhaços do navio e a atracção para a ilha fatal, uma vez que com uma interminável sensação de perda, de insistente lacuna, escreve aquele furioso livro em que tu (e eu?) partes para longes terras.

E de novo parte, ou melhor, reinicia a partida, porque, lábil, preguiçoso, um feixe de nervos, sempre tropeça no início, sempre gagueja na presença de deus, sempre reinicia a viagem, mesmo que o lugar preferido para o fazer seja, por exemplo, o dos diálogos lunares, em que o homem de pé segura a mulher, o braço esquerdo pela curva das pernas, o direito pelos ombros, sustentando-a diante da janela para lá da qual há árvores grandes no jardim navegando no luar, não do México neste caso, mas nos umbrais ou na praça antes da porta, das portas do reino milenar, para onde o leitor parte, descendo pela colina até à beira-rio, olhando pela janela do comboio que ele no sonho vê como se fosse um filme e não a vida e, simetricamente, na vida vê como se fosse um sonho e não um filme: o comboio que rasga o céu do lado esquerdo e no canto superior do mesmo, até fazer jorrar o sangue até ao negro do mar, como do negro ao sangue se passa pelo vidro, subitamente, insistentemente, estilhaçado pela luz; o leitor partindo, seguindo talvez ao mesmo tempo todos os outros raios apagados dessa já dita letra antiga, como pelos inúmeros corredores de uma mãe há muito morta.


8

O leitor regressa ao livro: desce portanto - desce para a terra(firme-movediça). Com o coração em expansão ou quase a falhar, veloz ou lentamente, apoiado no vento, baloiçado pelo vento. Não busca o lugar para aterrar, antes amorosamente se entrega aos ventos, à sua, deles ventos e dele leitor, velocidade, confiando que as águas que em baixo o envolverão o levam pelos inúmeros caminhos pelos quais apela, porque ele sabe que o que o espera é a formidável alegria ressurrecta da morte, a continuamente premeditada e espontânea, triunfante, insurreição do livro. Desce pois o leitor a bater com as pernas nas correntes do som ausentes, nas memórias próximas e longínquas das frases deste livro, de outros livros por onde a sua vida, dele e dela, foi etrenmaslaf escrita, e no entanto ainda oscila como entre duas águas:

desce envolvido em algodão, roçando-se nas nuvens rosa, chumbo, roxo, sangue, neve, redondo, nadando, claras águas, irradiantes peixes, vermelho oriente, caudalosa abelha, verde espuma, 1912, rio acima, ao longo do céu azul-cobalto, azul-turquesa, azul branco e negro, desce ao longo de intermináveis ravinas azuis, do monte Rushmore, basalto, cubos e pirâmides, vinte mil léguas submarinas, por onde ele e o vento ele e a luz assobiam e redemoinham, cavam e sobem, doce lava, terna lavas, ovas pantanosas, mil ovários em expansão.

Deriva, baloiça nas alturas como um anjo desajeitado que deixou queimar as asas com a ponta do cigarro, que saiu imprevidente sem guarda-chuva e agora pesa, desce, cai. Cai como uma espada informe, líquida, cujas fronteiras são as das coisas que rasga e a rasgam: tatuagem e palimpsesto.


9

Mais que riscado, o leitor é uma superfície vibrante. Saltando de risco em risco, a sua alma diz o texto, variando as entoações, sempre falhada a voz. O leitor é um vocativo que está sempre fora do lugar, e assim os disparos dividem-no em figuras precárias que imediatamente confundem os seus contornos num caleidoscópio errado (o folhear das páginas e o seu peso lamacento riscam-no e sujam-no) :

este comboio que sobe para o sanatório, aquele que vai e o que regressa do monte Rushmore, este avião que desce para o México, esta camioneta que se aproxima do Tenessee, este barco que desaparece ao chegar a Ítaca, esta mulher que se afasta e dobra à direita a esquina da rua, ou que se detém por momentos à porta da sala onde se ouvem as ondas, vão dividindo e tecendo o leitor que vibra como um pequeno animal amputado

E estas vozes endurecias e brilhantes, estar eternidade labiríntica que se trama no seu tempo de vida em redor destes nomes; «Petit-bourgeois! - Joli petit-bourgeois à la tache humide, est-ce vrai que tu m´aimes tant?» O leitor, mais que riscado, ofusca-se, e cada linha que se repercute na sua oblonga, sinuosa superfície diz pequenas frases fascinadas, precipitadamente. Em todas as direcções que o riscam e que deslizam umas sobre as outras, porque a página oscila sobre o mar, sob o sol; são mil sóis, mil reflexos os que tecem minuciosamente esta noite, aquele mal.

Então o leitor propriamente assim dito estremece e não sabe para que lado se há-de voltar, porque subitamente não cessa de aprender, de buscar o nome de um sofrimento que divide em si a luz das águas do céu, como uma candeia de montanhas, uma linha de horizonte de onde sempre está a nascer o teu corpo deitado: meu amor;

isto é a tua boca, esta é a linha de espuma com que te levantas da morte. E o leitor abana a cabeça. Porque isto é o teu nome que se enterra fundo, como uma árvore cujos ramos são outras tantas linhas riscando a minha alma. É preciso -lo decididamente de parte, consente, é assim que na página tu surges, sempre escondida nessas várias entoações, como se num insistente e falhado elogio que te atravessasse e que, riscando-te, assim permitisse que de pé cantasses, ó vítima da fome (!).


10

Lês com uma ferocidade suspensa. Como se indefinidamente pudesses guardar a respiração. Como se interminavelmente voasses à mesma altura das páginas que vais regularmente passando, sobre uma paisagem aparentemente uniforme, visto que se trata de uma desses livros gloriosos que interminavelmente falam. Quem o conhece já, calcula talvez: agora irás sobre o incêndio da casa, afastada da cidade, em cujo estábulo vivia o negro que era quase branco; ou sobre a mulher que a princípio chega à serração enquanto o homem lá trabalha, esquecido, com uma devoção alheia e insistente. Com uma devoção contrária tu lês: a mulher pensa em itálico. Entrando no lugar difícil, onde dentro dos ruídos do café se encontra o silêncio mais duro, lenhoso, mobilado. Na fronteira em que os olhares que por ti passam ou em ti se demoram constroem um brilhante país de neve. Violentamente entregue, sem que na serena atenção do corpo isso se veja. Ou antes, alguém pode ver essa força guardada com que lês, esse longo soluço de alegria errada (?), essa vertigem medida e minuciosa, com que as palavras se vão gravando na tua cabeça, essa paixão imóvel com que tu e o livro se entredevoram, esse implacável prazer que longe vibra no lugar de onde tu olhas as letras sobre a página larga e amarelada do livro. Narração: sem apoiares o ombro esquerdo contra a parede dos tijolos encerados, sem te recostares nas costas da cadeira, com o cotovelo direito apoiado na pedra escura da mesa redonda, com o punho fechado à altura do queixo, o antebraço esquerdo deitado ao lado do livro e a mão desse lado, entreaberta. O polegar dobrado, a unha cortada rente, polida pelos outros dedos. Agora a mão direita irá aos cabelos que te caíram quase sobre os olhos, e afastá-los-á para trás, sem que levantes o olhar. Depois, fecharás de novo o punho, lentamente, até teres de voltar outra página. Estarás assim cerca de hora e meia e será aí que acabas de ler o livro: em Tenessee. E então, ainda tensa, voltarás a cabeça para aqui, com uma alegria que ainda te prende o corpo à longa respiração do livro.


11

De costas, o leitor olha pela janela. A luz do candeeiro vermelho ilumina a chuva das folhas das árvores no largo, como «uma lua vermelha». Pela janela vê a noite posta sobre a mesa. Os martelos com que os operários batem, batem a sua cabeça que a miséria bate.

Descendo a rua na direcção do rio a dor comanda os passos largos, dir-se-iam à beira da vertigem, contudo certos.

Vê o calor que sobe até ao quarto, até à mesa onde o livro não repousa; a onda discreta do teu cabelo, ténue nuvem, no espelho que a janela faz; o desenho dos ombros no casaco leve; o andar límpido que se afasta e dobrará a esquina. Não repousa, não repousa. Descerá à direita. Alguma coisa que se não suporta. Então,

na cabeça, lentamente, as frases voltam a acender-se, fazem um barulho de páginas que se viram; deslizam umas sobre as outras: De costas, olho pela janela enquanto tu lês em voz alta: As ondas. As ondas brilham escuras no cérebro nocturnamente iluminado.


12

O leitor põe-se a escrever. Escreve para ti - coisa terrível; como se pode? Aceitemos mesmo que este saber se partilhe e que o leitor avance. Já antes era assim que o leitor era: escrevia. Mas digamos que a partir de determinado momento, por razões alheias à sua vontade, inerentes ao que de ti nele chama, o leitor diz:«o leitor põe-se a escrever».

Escreve para ti, que neste momento entras na sala e ficas por momentos encostada à ombreira da porta, do outro lado da luz, olhando-o. E tu que portanto não és estas letras, como que por dentro delas nasces como se nas conchas da espuma nascesses das águas, como se, ligeiramente inclinada, a custo, começasses a surgir do lado direito do écran, tu estivesses antes ao centro, em grande plano, com o olhar velado ou mesmo cega; de qualquer modo como se olhasses para onde não podes olhar. Não podes?

Voltemos à imagem das águas: o leitor escreve para ti, como se fosse a ti que via ao mergulhar no mar, chamando com toda a dor o desejo pelo que seria então a memória do teu nome; foi, por exemplo, esse gesto sobre a pele não seca, como se em todo corpo se guardasse de longe, ardendo, as sílabas as línguas da tua saliva e do teu suor. O leitor tece um membro seu que se dispersa e perde pelo ininterrupto intervalo.

O leitor escreve de onde? O leitor escreve da esquerda para a direita? o leitor escreve quando? com quê? o leitor escreve para ti? Quem edita o leitor? o leitor edita-te, meu amor? como se premeditasse os nomes de depois da morte? porque tu morres, não? meu amor, nestas páginas?

o leitor afasta-se um pouco e sabe que há algo que sempre lhe falta saber. Como então e porque desesperadamente escreve, tu cortas essas linhas alheias para te introduzires nelas, para de través nelas te insinuares, suspeita e fantasma, corpo incompleto. É que eu, diz o leitor, morri já por todos os séculos dos séculos e então será que essa morte assim continuadamente viva és tu?

Se o leitor escreve, tu escreves, meu amor, meu amor, então perguntar-te-ás como é que te podes erguer nestas frases, como é que tu própria, quer dizer, o teu corpo e o nome que tu usas e com que te usam, como é que esse teu corpo e esse teu nome podem ser furiosamente aqueles que esse tu designa e desdiz, se só assim te pode dizer. Que me inventes! que me inventes! O leitor abana a cabeça, sempre ferido desta dor e quem sabe se desta legria. Como te há-de ter viva se logo tu já o morreste? Percebes quando o jogo aqui é só um alibi e é do outro lado que as coisas se lêem. E esse teu lado é o teu, nome vazio, escritor ao contrário, leitor ao contrário, tu que com o apagares-me a voz tudo decides destas letras. Que as apagues também! Que me devores! que então correrei em ti, diz o leitor, como se diz, como o coração a sangrar em veneno sem remédio. O leitor escrevendo sabe que alguma coisa o risca como ele risca as frases por cima das quais escreve, que alguma coisa lhe embarga o nome, a voz, o corpo, o desejo, e que só enlouquecendo numa única letra, a tua, é que tudo pode entretanto irromper. Lê:

......................................................................................................................................................
De alguma maneira o leitor escreve para que seja possível ................................................




Manuel Gusmão
Dois sóis, a rosa - A arquitectura do mundo
Editorial Caminho, 1990

Música num espelho longe

O espelho está lá mas ninguém lá está
É uma cena deserta. O piano e a estante de música
estão vazios; são contornos da sombra
Do lado direito de quem olha daqui, há
uma ampla porta-janela que dava para
uma varanda que daria para uma selva imaginada.

A música que ouves não vem desta sala
Nasce e vem do maciço de árvores escuras
que brilham mais no escuro da noite ultramarina.
Vem do mar que está depois da selva que
está a seguir às árvores de um parque
que é uma memória de pedra que já começou a ruir.

É uma música poderosa mas lenta; feroz e densa
e voraz; selvagem mas não primitiva.
Nos arredores do império, num condomínio
colonial antigo e novíssimo, podes pela música
que sem resgate os dissolveu imaginá-los. Fora
pouco antes de desaparecerem -

Eram já extremos conspiradores sem conspiração,
de si mesmos exilados, perdida a juventude,
perdidos dessa selva em que teriam sido feras
e fora já a sua própria memória. A maturidade
apodreceu-os como uma floresta que se desfaz
na água nostálgica do desejo. A música

essa música num espelho longe foi o que sobrou
fala de um crime passional em que ninguém afinal
morreu, de um segredo partilhado e sem sentido
que ouves uma vez mais nessa voz abafada ou
rouca - como se diz? - nessa voz que te transporta
a essa cena deserta onde nunca terás estado.

No espelho longe num oriente extremo não podes ver-te:
não é a tua história; não é a história de ninguém. Mas
podes ver a música que através deles te envenena o sangue.



Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004

O corpo músico

Há uma imagem que regressa: ele está sentado entre as coisas
do trabalho da noite; ele concentrado, elas
reunidas: um piano dentro do dia; rodeado pela luz.

Do outro lado do dia e do mar da luz, ela chegou e
já ali está; suspende-se no limiar em arco; olhando-o
ela inventa-o e guarda-lhe a sombra, enquanto as mãos
dele escrevem no livro das horas a ela roubadas

o som futuro do cravo bem temperado. O som ressoa e
sonha no monte das aves e dos ventos em ruína; o som
é uma árvore manuscrita; minucioso um vento canta
os incêndios sobre a floresta petrificada ou o sol
sobre o monte em que a deusa dança sem cessar.

Era uma sala na clara e plena claridade do dia; e ele
trabalhava com os dedos acesos num canto que
será dedicado àquela que nesse momento chegava
Está a chegar. sempre. Está ali no limiar, leve
e oblíqua contra a ombreira da porta.
Olha-o e sabe que ele sabe que ela está ali.

Ela é doce sombra que equilibra a claridade
e o mundo. Entre ele e a morte é ela quem está.
Ele e ela são corpos músicos
e segundo o olhar dela é ele quem escreve. Ambos
sabem que estão num filme; que são uma imagem
de cinema. Uma imagem inexplicável guardada no cérebro
de alguém: uma ressonância magnética alucinou-a lá.

Desde há muito que está ali esse pequeno e vago
lume que no silêncio se cala ou chama
tremendo: essa imagem num filme num cinema
um dia brevemente perto de si;
um dia de noite, perto do sangue, perto
do seu incêndio escuro: ali, e depois
fica ao longo de uma vida: uma imagem
murmurante que nunca mais acaba de calar-se:
o cinema dos astros num cinema de bairro
já demolido, ali,
- Não. Não é essa a imagem Nem essa
a música. Não é isso que quero. Trocaste
Misturaste as imagens.

- Que esperas, por que dependes dela
e a manténs acesa, inventada em falso? - Porque
a inventei eu e para não haver morte a inventava.

Mas ouve: Sim, a imagem que regressa é outra:
É uma imagem que a música me deu em troco de nada.
Esta: a mulher tem à esquerda a janela
por onde - se ela olhar - o mundo exterior aparece
aparece escrito pela copa das árvores:
lenha para a fogueira do dia.

O turbilhão de luz vem do mar
e quase dissolve a humana forma da mulher nesse canto
da sala que é uma praia e branda e antiga tijoleira
do sul. Aí, perto dessa janela ofuscante
junto à fonte do dia lá fora;
aí onde ela está sentada - silhueta em contraluz,
figura de sombra recortada;
aí onde ela está e o cravo diz as suas mãos: Aí
está o centro da música.

Já tudo era assim antes de teres vindo. E assim
continua depois de ele ter chegado, acrescentando-se
a este frágil mundo que vem vinda à imagem precária


e insistente. Agora,
________________ uma eternidade depois

apoiando-se à ombreira da porta o homem demora-se
no limiar dessa praia onde a música resiste
à luz que jorra pela janela.

A mulher é a fronteira viva do som
são as suas mãos e os movimentos do seu corpo em música
quem responde frase a frase por frase à dissolução nas ondas
cintilantes. Por ela se suspende o afogamento iminente
da casa. A música chama a si toda a luz e sobe; a música
eleva e abre no centro do mar a casa que tinhas perdido.



O homem que vem da sombra interior demora-se
no limiar das águas que abrem o leque de luz e
olha o centro que a música escolheu para irradiar:

a mulher e o seu trabalho solar, as suas mãos escrevendo
na aérea matéria do mundo, a solidão do cravo
a tempestade eléctrica o som do cravo a solo.

Ali, onde há uma vertigem no ar, ali, onde a sombra
dança como se uma chama fosse: Aí nas incessantes
margens do nascimento o homem fecha uma e outra vez
os olhos e então conta a cegueira que o sol impõe
olha a mulher. Vê
a sua livre obediência à música
que nela o
estremece e chama.
- A imagem é a mesma / só
que vista de outro lado.

Não. Não há outro lado.
Quase cego quase surdo, lembra-te -
como se pudesses esquecer -



Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004

A terceira mão de Carlos de Oliveira

I

A primeira mão escreve com o tempo e contra
o tempo
a segunda reescreve o passado com o futuro e
por todo o lado instaura o presente do fim
depois a terceira mão vem e escova
e constela os tempos

II

A primeira monta um cenário nocturno à espera
da noite que virá. A segunda traz a esse cenário
a noite glaciar. A terceira sobrepõe as noites
e revela o seu povoamento
comum: luz eléctrica, papel intensificado,
uma teoria da escrita, desolação.

III

Uma segreda e comove-se
no espelho tempestuoso. Outra seca
o saco lacrimal e deduz de si mesmo o movimento
que faz a emoção: A terceira contribui
com o espelho das metamorfoses, a câmara
que filma a dedução
[e enlouquece numa só letra.


Manuel Gusmão
A Terceira Mão
Editorial Caminho, 2008
Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.

Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo e
entretanto é feita para mim; atinge-me
à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que me consome
até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta crosta da terra

Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?

É como se soubesses
que voltará, sim, e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
quem já lá não está. Quando
é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
à possibilidade dessa forma?



Manuel Gusmão
Teatros do Tempo
Editorial Caminho, 2001

Uma criança interrompida

Esta criança é uma lâmpada que assustada
se apagou. Nem mapas nem paisagens já
nada a espanta ; nada a pode já espantar-
o mundo conhece-o pequeno: é uma prisão
tão apertada ao corpo que lhe tolhe os desejos
e o riso, os jogos e a invenção.

O seu poço, os ecos que nele teriam
brilhado, o labirinto fragrante dos tecidos
dos arcos e das portas casa após casa
são agora ruínas sobre ruínas, escombros
que já caiadas salas e quartos foram, ruas
fendidas sob o céu estéril dos assassinos.

Esta criança tem nas costas tatuada a origem
que se cola ao seu futuro, empurrando-a
para lá, para o destino destinado - de onde vens tu?
- venho de lá e vou para lá. - Não tem origem
que lhe dê p´ra muito mais que uma morte
repetida que cala os lugares e apaga as vozes.

No cinema que ondula a negro entre o seu crânio
e a abertura solar dos olhos - é sempre a catástrofe
um desastre que regressa. Os bárbaros desta vez
vieram numerosos e diversos mas nem sequer
eram parte da solução. Não eram parte de nada
apenas iam e vinham do outro lado deste lado.

É difícil mas supõe que esta criança terá conhecido
uma glória um tempo: Andava de bicicleta
numa paisagem de palha ; com os seus se batia
em alta grita. Apedrejava pássaros, cães e soldados.
Agora só uma pequena víbora se deita com ela
no sono e no sonho a morde e a interrompe.

Esta criança é breve.




Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004

Havia séculos

Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava : era o incêndio do vento

folheando a memória da terra

essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores ;
essa teia nocturna de troncos e limas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens

o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos

Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.

Havia séculos
e - atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa rosa alucinada - havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.

A grande migração das imagens- havia séculos -
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos

sem paz e sem lei, sem amos nem destino




Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004