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Velho cargueiro num velho porto

Não tinha nome e ancorámos à meia-noite.
As raparigas, na sombra da paragem morta, não podiam,
Rindo em coro à luz do candeeiro,
Deixar-nos o coração amargo com o sal do mar.
Não, não havia beleza nesse lugar.
Mas acordaremos cedo e veremos ali à mão
O molhe, a rua, o mercado, o amigável rosto do relógio,
- A verdadeira fisionomia de uma terra nova -
A nossa bandeira içada na Primavera sobre os correios,
Cujas pedras pareciam trazer notícias de alguém
Amado, e da nossa proa oxidada observaremos
As linhas do eléctrico que avança para o sol -
A emergência era a de Christian de Despond
E a marca de Sexta-Feira que Crusoé viu sobre a areia.


Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

Delírio em Veracruz

Para onde foi a ternura, perguntou ele ao espelho
Do Biltmore Hotel, quarto 216. Ah,
Poderá o seu reflexo, ali encostado ao vidro,
Perguntar também para onde fui, para que horror?
É esse reflexo o que agora me contempla com terror
Atrás da tua barreira inclinada? A ternura
Estava aqui, neste mesmo aposento, neste
Lugar, com a sua forma vista por ti, com os seus gritos
Escutados por ti. Que erro
Há aqui? Sou essa imagem fendida, precipitada?
É este o fantasma do amor aquilo que reflectias?
Agora com um fundo de tequila, beatas, colarinhos sujos,
Perborato de sódio, um rascunho
Para os mortos, um telefone desligado?
... Estilhaçou todos os vidros do quarto, (Conta: $50)


Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

O rugido do mar e a escuridão

Ele pediu ao seu fantasma uma visão do mar,
Que pudesse ancorá-lo no meio do pensamento
Para sempre, para que ele pudesse resginar-se
E não fosse perseguido eternamente;
O fantasma inclinou a cabeça e disse gravemente:
Ó desolado, ó esquecido, devias abandonar a tua única dor, e saber
Que edificaste as tuas lágrimas, que fechaste em terra o teu coração;
Devias implorar o rugido do vento do mar
E a escuridão, e, tenhamos razão ou não,
Deves pedir sempre o desassossego e a sua monotonia;
A sua bruma sobre o teu peito - O seu barco no porto
Carregando as doces madeiras amontoadas no cais.
Ele olhou-o longamente, e depois, com uma gargalhada,
Saltou para bordo e nunca mais ninguém o viu.


Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

Um rio seco é como a alma

Um rio seco é como a alma
De um poeta que não pode escrever, embora conheça
Quase perfeitamente o tema e as mágoas
Da morte ressequida pelo estio. Mas o que queria,
E foi outrora um mar do mais puro cristal
Recua, torna-se sombrio como arbustos amoniacais, como
___________as folhas antigas do amor,
E abandona o pensamento. Não imagina
Nada que o possa substituir: só no pólo
Da memória oscila uma absurda bússola.
Por isso o rio, entre as lamentáveis árvores sombrias,
É uma agonia de pedras, de horrores submersos
Agora revelados, descoloridos. Por isso existem estas,
Estas pedras, estas ninharias
Quando o rio é uma estrada e a mente um vazio.


Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista
Noite. E mais uma vez, a luta nocturna e encarniçada com a morte. A sala parece que vem abaixo com orquestras demoníacas; os momentos de sono aterrador, as vozes que gritam lá fora, o meu nome continuamente repetido com desprezo por imaginários grupos que me aparecem, as espinetas da treva… Como se ainda não bastassem os ruídos autênticos destas noites da cor do cabelo grisalho! Não é o tumulto dilacerante das cidades americanas, esse ruído contundente dos grandes gigantes moribundos, mas os uivos dos cães vadios, os gatos que levam toda a noite a anunciar a alvorada, o rufar de tambores, os gemidos que, mais tarde, se hão-de encontrar transformados em penas brancas, enrodilhadas nos fios telegráficos de quintais, ou em aves domésticas empoleiradas em macieiras, a eterna tristeza sempre desperta do grande México. Quanto a mim, gosto de transportar a minha tristeza para a sombra dos velhos mosteiros, de levar a minha culpa para claustros e tapeçarias debaixo dos quais a possa ocultar, e para o abrigo de incomparáveis cantinas onde oleiros e mendigos coxos bebem ao alvorecer e cuja beleza de junquilho se revela neles depois de mortos. Fica sabendo, Yvonne, que, quando me deixaste, fui para Oaxaca. Não há frase mais triste. Deverei contar-te, Yvonne, o horror da viagem através do deserto, no comboio de via reduzida, instalado numa desconjuntada e estrepitosa carruagem de terceira? Deverei também falar-te da criança, cuja vida eu e a mãe salvámos com o esfregar-lhe a barriga com tequilla da minha garrafa, ou dizer-te, quando fui para o quarto do hotel onde, em tempos, fomos felizes, o barulho que faziam a matar criação na cozinha, o que me fez sair a procurar a claridade da rua? E que, mais tarde, nessa noite, vi um abutre poisado no lavatório? Horrores que só os nervos de um gigante suportariam! Não, os meus segredos são daqueles que se guardam nas sepulturas e têm de se manter inviolados. E é por isso que me imagino um grande explorador que, tendo descoberto uma terra extraordinária, jamais poderá abandoná-la, para a dar a conhecer ao mundo, mas essa terra tem o nome de inferno. Não é, evidentemente, o México. Essa terra acha-se dentro do meu coração. Suponho que sei o meu bocado a respeito do que seja sofrimento físico. Mas isto é o pior de tudo – isto de uma pessoa sentir a alma a morrer. Não sei se é porque esta noite a minha alma morreu de facto, que eu, neste momento, sinto qualquer coisa que se assemelha a paz. Ou será porque, mesmo através do inferno, exista um caminho, como Blake muito bem sabia e porque, ainda que eu não tome por esse mesmo caminho, o tenha avistado ultimamente em sonhos? (Depois de alguns mescais.) Desde o mês de Dezembro de 1937 e desde que te foste e me dizem que estamos na Primavera de 1938, tenho andado a lutar deliberadamente contra o meu amor por ti. Não me atrevo a render-me a ele. Tenho-me agarrado a todas as raízes ou ramos que me possam sustentar sozinho sobre este abismo da minha vida, mas já não consigo enganar-me a mim próprio. Se tiver de sobreviver, será só com o teu auxílio. De outra maneira, mais tarde ou mais cedo, acabarei por cair. Ah, se ao menos me tivesses deixado como lembrança alguma coisa por que te pudesse odiar, de modo a que, enfim, nenhum bom pensamento a teu respeito me pudesse aflorar nesta região terrível onde me encontro! Mas, em vez disso, mandaste-me aquelas cartas… E, se tu tivesses também escrito logo, as coisas podiam ter-se passado de maneira diferente – um postal que fosse que me tivesses escrito, até a respeito da angústia comum da nossa separação, apelando novamente para nós próprios – de qualquer maneira e fosse como fosse – dizendo que nos amávamos, qualquer coisa – um simples telegrama que fosse. Mas tu esperaste demasiado – ou pelo menos é o que, neste momento, me parece – esperaste até para lá do Natal e do Ano Novo e, nessa altura, não fui capaz de ler o que me dizias. Não: raramente me encontro liberto de tormentos, ou suficientemente desembriagado para aprender mais alguma coisa além das intenções de orientadora que transpareciam da tua carta. Mas podia e posso tocar-lhes. Creio que trago algumas comigo. Mas causa-me tanto sofrimento lê-las! Parecem-me demasiado pensadas. Agora, não tenho coragem para o fazer. Não posso lê-las, que me despedaçam o coração. E, de qualquer maneira, a verdade é que vieram tarde demais. (Depois de mais alguns mescalitos, ao alvorecer, no Farolito.) De qualquer maneira, a verdade é que o tempo não passa de um curandeiro parlapatão. Como é que alguém pode ter a pretensão de me falar de ti? Não podes imaginar o que é a tristeza da minha vida. Incessantemente perseguido, quer a dormir, quer acordado, pela ideia de que tu poderás precisar da minha ajuda que, afinal, te não posso dar, tal como eu preciso da tua, que me não podes dispensar porque só em visões e em todas as sombras te encontro, vi-me forçado a escrever-te esta carta, que nunca te mandarei, para te perguntar o que havemos de fazer. Não achas isto extraordinário? E, contudo, não devemos isso a nós próprios, a essa personalidade que criámos, independentemente de nós mesmos – o fazermos uma nova tentativa? Ai de mim, que é que foi feito do amor e da compreensão que em tempos possuímos? Que é que lhes irá acontecer… que virá a ser dos nossos corações? O amor é a única coisa que imprime sentido aos nossos pobres caminhos neste mundo; esta afirmação não é – receio-o bem – uma descoberta minha. Vais pensar que estou doido, mas é assim que eu bebo, como se estivesse a receber eternamente um sacramento. Oh, Yvonne, não podemos consentir que aquilo que nós criámos mergulhe no esquecimento desta maneira obscura.

Malcolm Lowry
Debaixo do Vulcão
Relógio D'Água Editores, 2007
Tradução (revista) e Notas de Virgínia Motta

Os bêbados

O ruído da morte está neste bar desolado
Onde a tranquilidade se senta inclinada sobre a sua oração
E a música abriga o sonho do amante
Mas quando moeda alguma compra este fundo desespero
Nesta casa tão solitária
E de todos os destinos o mais solitário
Onde nenhuma música eléctrica destrói o bater
Dos corações duas vezes quebrados mas agora reunidos
Pelo cirurgião da paz no peróneo da desgraça
Penetra mais profundamente do que os trompetes
O movimento da mente que aí faz a sua teia
Onde as desordens são simples como o túmulo
E a aranha da vida se senta, dormindo.



Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

Nocturno

Neste anoitecer Vénus aparece sozinha
E no caminho de casa as penas são como seda
Como a túnica de um múltiplo fantasma
Como asas despedaçadas num céu de leite.
Em breve as gaivotas transformar-se-ão na pedra
Que procurei e perdi além, na senda dos
Bosques onde eu e a minha ignorância
Caminhámos juntos sobre as mãos e os joelhos
E juntos continuamos a caminhar sob a palidez
De um belo anoitecer muito amado,
Mas este anoitecer é a minha prisão
E os polícias brilham entre as árvores.



Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

O último homem no dôme

Onde está o sublime bêbado? Será o grande bêbado?
Este pequeno mistério imponderável
Perturba-me sempre à meia-noite:
- Para onde foi, para onde levou a sua caneca?
Para onde foram eles, os meus amigos, os que não têm porto?
Já não se lamentam nos bares, já não se fazem ao mar;
Um estremecimento da vontade e então podem sonhar,
Vivendo enfim as vidas que sempre ansiaram -
Intermináveis corredores de botas para lamber,
Ou no fim de todos eles o Pope com a sua biqueira.
Onde estão os teus amigos, seu tolo?, só te resta um,
E também esse já te enjoa -
Embora muito menos que os outros; e isto sei muito bem,
Uma vez que sou o último bêbado: bebo sozinho.



Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução José Agostinho Baptista

Sem tempo para parar e pensar

A única esperança é o próximo copo.
Se te apetecer, podes passear.
Sem tempo para parar e pensar,
A única esperança é o próximo copo.
É inútil hesitar no limite,
Pior que inútil é toda esta conversa.
A única esperança é o próximo copo.
Se te apetecer, podes passear.



Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução José Agostinho Baptista

Fantasmas nas casas novas

Há algo de assustador nos fantasmas das casas novas:
Os fantasmas das casas velhas já são maus quanto baste:
Mas os fantasmas das casas novas são terríveis.
A grande novidade destas novas e desoladas casas
Já seria bem terrível sem os fantasmas.
Mas os fantasmas também são novos.
Raparigas tristes com blusas azuis
E pessoas nos seus assados de Domingo
Sob a grande luz do dia, dentro destas casas novas
Em ruas onde os homens varrem o vidro partido.



Malcolm Lowry
As cantinas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008
Tradução José Agostinho Baptista