Na manhã seguinte Cesare Pavese não pediu pequeno-almoço

Sozinho desceu do comboio,
atravessou sozinho a cidade deserta,
sozinho entrou no hotel vazio,
abriu o quarto solitário
e escutou assombrado o silêncio.
Dizem que levantou o telefone
para ligar a alguém,
mas é falso, completamente falso.
Não havia ninguém a quem ligar,
ninguém vivia na cidade, ninguém no mundo.
Bebeu o copo, as pequenas pastilhas
e esperou que o sono chegasse.
Com algum medo a si mesmo
- pela vez primeira afirmava a sua existência –
talvez curioso, com gesto cansado,
sentiu cair o peso das pálpebras.
Horas depois – um estranho sorriso abria-lhe os lábios –
anunciou a si mesmo, com firmeza,
a única certeza que afinal atingira:
jamais voltaria a dormir sozinho num quarto de hotel.


Juan Luis Panero
Los trucos de la muerte (1975)
Tradução A.M.

Garrafa ao mar

E tu queres ouvir, queres entender. E eu
digo-te: esquece o que ouves, lês ou escreves.
O que eu escrevo não é para ti, nem para mim, nem
para os iniciados. É para a menina que ninguém
chama para dançar, é para os irmãos que
afrontam a borracheira e aqueles que desdenham
os que se crêem santos, profetas ou poderosos.


Jorge Teillier
Tradução A.M.
«Com o seu sócio está tão envolvido na discussão das percentagens de algo, que não dá pelo que acontece: são engolidos por uma baleia. Dentro do estômago da baleia Calvino continua a discutir percentagens. Percebe, agora, qual o negócio, trata-se da venda de petróleo e de livros. Quem fica com o quê? A discussão está acesa e Calvino empenha-se nela cada vez mais; vira depois as costas ao seu sócio e sai para a rua: observa as pessoas a andarem de um lado para o outro. Os poucos que não estão com pressa, aqueles que param, discutem entre si, percentagens também: 30, não 37!, não, não, 32! Todos discutem, ele próprio não consegue deixar de repetir, para si próprio: 43%, pelo menos 43%!
Mas ao mesmo tempo existe aquela sensação de que estão todos dentro do estômago da baleia, de que aquelas pessoas que ele vê na cidade, cheias de pressa, de um lado para o outro, a discutir percentagens, e ele próprio, há muito foram comidos.»



Gonçalo M. Tavares
O senhor Calvino
Editorial Caminho, 2005

Esquerdireita

A esquerda da minoria da direita a maioria
Do centro espia a minoria
Da maioria de esquerda
Pronta a somar-se a ela
Para minimizar
Numa centrista maioria
Mas a esquerda esquerda não deixa.
Está à espreita
De uma direita, a extrema,
Que objectivamente é aliada
Da extrema-esquerda.

Entretanto
Extra-parlamentar (quase)
O Poder Popular
Vai reactivar-se, se...

Das cúpulas (pfff!) nem vale a pena
Falar, que hão-de
Pular!

Quanto à maioria de esquerda
Ficará – se ficar – para outro poema... 



Alexandre O´Neill
Anos 70 – Poemas Dispersos
Assírio & Alvim, 2005

Uma voz

«Não há amizade, disse a voz, não há amor, não há épica, não há poesia lírica que não seja um gorgolejo, ou um gorjeio de egoístas, trinado de batoteiros, borbulhão de traidores, efervescência de arrivistas, garganteio de maricas. Mas tu o que é que tens, sussurrou Amalfitano, contra os homossexuais? Nada, disse a voz. Falo em sentido figurado, explicou a voz. Estamos em Santa Teresa?, perguntou a voz. É esta cidade parte, e não pouco destacável, do estado de Sonora? Sim, respondeu Amalfitano. Então é isso, disse a voz. Uma coisa é ser arrivista, digo eu, para dar um exemplo, disse Amalfitano alisando o cabelo como que em câmara lenta, e outra muito diferente é ser maricas. Falo em sentido figurado, repetiu a voz. Falo para que tu me entendas. Falo como se eu estivesse, e tu estivesses atrás de mim, no ateliê de um pintor ho-mos-se-xu-al. Falo de um ateliê onde o caos é só uma máscara ou uma ligeira fetidez de anestesia. Falo de um ateliê com as luzes apagadas onde o nervo da vontade se desprende do resto do corpo como a língua da serpente se desprende do corpo e repta, automutilada, entre o lixo. Falo das coisas simples da vida. Tu ensinas filosofia?, perguntou a voz. Tu ensinas Wittgenstein?, perguntou a voz. E já te perguntaste se a tua mão é uma mão?, prosseguiu a voz. Já me perguntei, disse Amalfitano. Mas agora tens coisas mais importantes para te interrogares, ou estou enganado?, perguntou a voz. Não, respondeu Amalfitano. Por exemplo: por que não ires a um viveiro e comprar sementes e plantas até talvez uma pequena árvore para plantar no meio do teu jardim das traseiras?, perguntou a voz. Sim, disse Amalfitano. Pensei no meu possível e exequível jardim e nas plantas que preciso de comprar e nas ferramentas para o executar. E também pensaste na tua filha, disse a voz, e nos assassínios que se cometem diariamente nesta cidade, e nas nuvens maricas de Baudelaire (perdão), mas não pensaste seriamente se a tua mão é realmente uma mão. Não é verdade, disse Amalfitano, claro que pensei, claro que pensei. Se tivesses pensado, disse a voz, outro galo cantaria. E Amalfitano ficou em silêncio e sentiu que o silêncio era uma espécie de eugenismo. Viu as horas no relógio. Eram quatro da manhã. Ouviu alguém a ligar o motor de um carro. O carro demorava a pegar. Levantou-se e espreitou à janela. Os carros estacionados em frente da sua casa estavam vazios. Olhou para trás e a seguir pôs a mão no manípulo da porta. A voz disse: cuidado, mas disse isto como se estivesse muito longe, no fundo dum barranco onde espreitavam pedaços de pedras vulcânicas, riolites, andesites, veios de prata e veios de ouro, charcos petrificados cobertos de ovinhos minúsculos, enquanto no céu arroxeado como a pele de uma índia morta à paulada sobrevoavam águias-de-cauda-vermelha. Amalfitano saiu para o alpendre. À esquerda, a uns dez metros de casa, um carro preto acendeu os faróis e arrancou. Ao passar diante do jardim, o motorista inclinou-se e observou Amalfitano sem parar o carro. Era um tipo gordo e de cabelo muito preto, vestido com um fato barato e sem gravata. Quando desapareceu, Amalfitano voltou para casa. Mau aspecto, disse a voz, mal ele passou a porta de entrada. E depois: tens de ter cuidado, camarada, parece-me que aqui há coisas que estão no vermelho vivo.»



Roberto Bolaño
2666
Quetzal, 2009
Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra

A defesa do poeta

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto


Sou um vestíbulo do impossível
um lápis de armazenado espanto
e por fim com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim


Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes


Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei


Senhores professores que pusésteis
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição


Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis


Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além


Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem ?


Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa


Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer.


Natália Correia

Duas pessoas

Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frémitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? - pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atónitos - são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção («o teu cabelo»), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo. É melhor parar com tais explicações. Aluguei esta casa quando vim do estrangeiro. Sentia-me transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto de gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências ou estabelecer, no equívoco plano das literaturas, as fraternidades internacionais. Regressei farto, farto, um milhão de vezes farto. Aluguei a casa, comprei livros e discos, uma cama, pouco mais. Gosto dos lugares ascéticos. Sou uma pessoa esquisita. Deito-me e ponho-me a fumar e a ouvir discos. Ouço Bach. Gostaria de ter um cravo e tocar. Fumo muito. Faz-me mal. Abro um livro e leio duas ou três páginas. Às vezes trago uma prostituta para casa e tento que ela beba comigo meia garrafa de brandy. Mas não sei conversar, e ela sente-se constrangida, lesada. Então digo qualquer coisa: o teu cabelo, por exemplo. E a rapariga não compreende. Há ocasiões em que as prostitutas imaginam tratar-se de um cumprimento, e sorriem. Sorriso vacilante, que se não sabe se crescerá, apossando-se do rosto todo, da pessoa toda, ou se então será reabsorvido em si mesmo. Estaria porventura no meu poder fazê-lo aumentar até à emoção, à gratidão. Mas fico-me por aí. Acendo mais um cigarro. Ela tenta: o meu cabelo? Não percebe, ou espera que eu faça surgir, dentre a massa de humilhação e marginalidade da sua vida, essa trémula, veloz alegria. Eu que sou um homem, que possuo a ambígua faculdade da doçura viril, e posso exibir a comoção perante a beleza, mesmo a fortuita e frágil beleza humana. Mas estaco. Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. Digo: queres um cigarro? Ela abana negativamente a cabeça. E o tal cabelo mexe-se de cá para lá sob a luz, escorrega por cima dos ombros. Ela passa as mãos devagar, as mãos espalmadas, sobre o tal cabelo que brilha sombriamente na luz. Levanta-se, nua, com o tal cabelo muito caído pelas costas, pelos ombros, e o sapato - enfim encontrado - na ponta dos dedos. O sapato destrói a mão direita, ah! destrói-a irrecuperavelmente, e só a mão esquerda permanece com alguma dignidade, tombada junto à perna, inútil, despertando-me uma qualquer ideia, excessivamente brumosa, que eu agora procuro tornar mais real, dizendo: a tua mão. Mas ela confunde e ergue a mão direita com o sapato um pouco sujo, a verem-se-lhe as palmilhas escurecidas. Poderia eu amar esse sapato, quero dizer: essa mão caminhando ao encontro de uma possível emoção, de um estremecimento subtil que abrisse por fim a veemente máquina interior e nos fizesse a nós dois, a jovem prostituta humilhada e o homem gasto, a benignidade de breve mas verdadeiramente humana conciliação? Fico deitado tardes inteiras, fumando interminavelmente. Bach. Cinco páginas do Hamlet, 2.0 acto, 2.ª cena. A ficção da loucura por parte de Hamlet é dúbia. Polónio por seu lado submete-se às regras do perigosíssimo jogo. Nesta atmosfera nem a ficção da loucura é gratuita, nem a lucidez casual. Mas eis toda a verdade no espaço rápido e fechado. As leis do fingimento são secretas, intraduzíveis. Perfeito. Nelas reside o segredo total. Quarto do castelo em Elsenor. A ficção (ou fingimento) é o único caminho para a verdade? - Que ledes, meu senhor? - Palavras! Palavras! Palavras! - Mas de que se trata, meu senhor? - Entre quem? E Bach ao fundo. Concerto Brandeburguês nº 5 pela Orquestra de Estugarda. Transferi tudo. Eis como funcionam estas minhas admiráveis virtudes humanas. E a pobre rapariga levanta-se, depois de recusar o cigarro, e aproxima-se com o seu desgraçado sorriso, vulnerável assim entre a última humilhação e uma espécie de momentânea ressurreição do valor da vida e da pessoa. Tudo isso à minha frente, entre os belos sons de cravo de Bach e as palavras de uma trágica e tão significativa comicidade de Shakespeare. Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras - mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e - fácil! - retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios, e confundo-a depressa com a minha, passando a língua por cima. Pois eu tenho muita saliva, muita abjecção onde afundar a abjecção dos outros. Estou deitado e, pela cidade adiante, caminha a prostitutazinha. Embrulhada no seu casaco, atravessa as ruas, pelas sombras, pelas luzes, debaixo de árvores e prédios enormes. Vem, vem. Bate¬-me à porta. Eu poderia gritar, fazendo calar o disco e atirando para o lado o meu livro: chega alguém! Ela entra, etc., etc. Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a subtileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espectáculo do nascimento e acção de um corpo. Passo-lhe a ponta dos dedos pelo rosto. Não são as rugas ou a gordura de um rosto, qualquer falha, o que me repugna. Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão. Será isso? Ou serei eu uma criatura estéril, sem dons, sem expansão? Que oportunidades! Ela está agachada, procurando esse perdido sapato providencial; curvada, curvada como um ser indefeso, oferecido a maravilhosas capacidades minhas. Eu aproximar-me-ia e a minha mão correria ao longo do seu cabelo, tocaria no ombro, tomaria a sua mão. E ela elevava então para mim os grandes olhos onde o terror se diluía, os olhos que recebiam e devolviam uma luz maior. Eu poderia dizer: o teu cabelo. Ou: a tua mão. Ou ainda: tu. Antes disso, que posso saber, embora aconteça aquilo a que tão imprópria e ingloriamente se chama intimidade? Uma casa ascética depois de um fácil tumulto móvel, Shakespeare e Bach após lugares e tempos improfícuos. Tudo uma visão desbaratada pelo carácter básico da renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. A mulher diz: o meu cabelo? Eu acendo um cigarro e pergunto: queres um cigarro? E enquanto ela se levanta para alguma coisa porventura definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover.

Este senhor taciturno que me recebe com uma fria gentileza parece ter viajado muito. Agora vive na nossa cidade - que não sei se é também a dele - numa casa quase sem móveis que me faz sentir gelada, mais gelada ainda depois de atravessar as ruas escuras e nevoentas. Ele paga-me bem, este senhor, e por isso venho muitas vezes. Está sempre só, bebendo e ouvindo discos intermináveis. A casa está cheia de fumo. É horrível. Mas pergunto: será apenas por me pagar bem que volto sempre? Bato de leve à porta, e ouço o disco parar bruscamente ou descer para um sussurro. Os passos deslocam-se pelo corredor, a porta abre-se muito devagar. E cá está a cara dele - feia, triste e os olhos fixos. Sorri incrivelmente - assim como quem vai pedir desculpa, e depois fica de súbito muito sério. Estou farta dos homens, quase nunca tenho prazer em ir para a cama com eles. Porque é tão degradante a insolência dos jovens como a devassidão dos velhos. Sinto-me muito só junto deles, acho-os absurdos com o seu sofrimento mal oculto atrás de uma simulada virilidade. Há neles uma solidão igual à minha, tão premente como ela, mas a que a fatuidade tira qualquer nobreza. Os homens imaginam, suponho, que me sinto humilhada na minha profissão e que existem em mim, sempre prontos, um apelo, uma súplica. Mas não. Estou só, apenas isso, e a muita gente já tenho eu ouvido dizer o mesmo. Às vezes ele toca-me no rosto com muita atenção e vejo que há por detrás dos seus gestos, do silêncio, um ardor exasperado mas impaciente ou envergonhado de si. É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável e repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo talvez de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os seus olhos. Mas arrependo-me. E ele olha para mim aterrorizado. Depois fecha-se. Oferece-me de beber e recuso quase sempre. E então murmura palavras indefinidas, embaraçadas: a tua mão, a outra, a mão livre. Sim, vai pedir-me que fique, e o afague, sei lá, talvez que morra com ele, tomando os dois um tubo de comprimidos. É homem para isso. Cheira a desespero a quilómetros de distância. Mas volta-se para a janela enquanto me visto, e então só penso em desaparecer, abandonar esta criatura atacada pela lepra, este homem que porventura eu salvaria, se houvesse em mim mais força e determinação ou mais doçura ou uma piedade maior. Porque é um ser minado, destruído. Ainda vivo apenas para pedir socorro. Vou junto dele, toco-lhe no braço, beijo-o na boca. Um momento apodera-se de mim a vertigem da misericórdia: salvá-lo, salvá-lo! Mas eu própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade nocturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores.
Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma sumptuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se - o espírito do último homem. Queres um cigarro? - pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho bâton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica - eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?



Herberto Helder
Os Passos Em Volta
Editora Estampa, 1963 

O quarto

Ele pareceu não entender a alusão. Voltou para mim o rosto irónico e perguntou:
- A que se referia?
- À morte – respondi.
- Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a pensar o mesmo.
- Pensamos todos no mesmo a partir de certa altura.
- Talvez – murmurou, e a voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos de igual maneira. Sou forte. Por isso é que penso nela. Detesto a fraqueza que se remedeia na imaginação, nas hipóteses. Não creio em nada. Não desejo crer em nada.
- Pensa que vai morrer quando quiser?
Olhou-me em cheio, sorriu. Tinha uma viva e nobre cabeça de homem antigo. Parecia saber muito. Não devia acreditar em nada. Notava-se no olhar culto e virilmente triste.
- É isso. Trabalho na minha morte. Um homem verdadeiro tem direitos e deveres para com a sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
- Sim, já mo disse.
- Conhece o sítio? – E as palavras subentendiam ramificações de sentido, outras intenções. Mas a voz era imperturbável. Este homem morreria da sua própria morte, dentro dela.
- Conheço. Fica na outra costa da Ilha. Há a montanha sem árvores. Pedra e urzes. Pavoroso. Defronte fica o mar. O mar lá é bravio.
- É água cinzenta e branca. E atrás há a grande montanha por onde só andam cabras. Mas na planície, à direita, crescem as árvores onde o vento do mar vem bater. De noite tudo aquilo vibra e uiva. E a terra arenosa estende-se pelo outro lado de fora. Quando há tempestade é de uma beleza diabólica. Bom para nos sentirmos sós, para saber se ainda existe o orgulho do medo.
- Compreendo que construa aí a sua casa.
- Construo a casa muito devagar. É a minha última tarefa. Forço os operários a trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou tão caro uma casa de um só piso. Quando ficar pronta já nada mais terei a fazer. Seria estúpido procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. É de sangue. Meu avô correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai andou pelas guerras depois de me ter gerado, e lá morreu. Homens que fizeram uma tarefa e nela puseram o sentido da sua vida. E deram-se por cumpridos, e regressaram ou morreram. Sabedoria, não é? Não quero ser fútil. É o único pecado do espírito. Ponho a minha força toda nas razões da vida. Isto quer dizer que me preocupam a oportunidade e a qualidade da minha morte. Pareço…enfim, digamos, pareço…solene?…
Riu.
- Sou, como direi?, sou um homem religioso.
- No entanto…
- Claro, não acredito em nada disso…nessas coisas…imortalidade da alma…Deus, o barroco Deus teológico… o bem comezinho, o mal comezinho…Detestável, tudo isso, as crenças e virtudes da baixa religiosidade.
- Talvez creia – disse eu – que vida e morte se abram uma para a outra, se alimentem mutuamente. Que seja cada uma delas uma espécie de duplo da outra. Se animem e, por assim dizer, se justifiquem e signifiquem entre si.
- Quer exprimi-lo desse modo? – As mãos traçaram subtilmente um gesto de irónica concessão. – Talvez seja isso… Aos vinte e cinco anos fui viajar. Estive em muitos países. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países. O homem é estúpido. E precisa que o amem, precisa amar. Um pouco repugnante, não? Mas pode-se amá-lo, assim repugnante. Depois parei, vim para a Ilha. E os círculos foram-se apertando. Hoje não saio deste café e do hotel, não estou a seguir o andamento das obras. Daqui a algum tempo mudo-me para a casa. Depois… Compreende o que digo quando falo de espírito religioso?
- Sim, parece-me que sim…
- A casa tem três quartos, além de cozinha, casa de banho e despensa. Um é o quarto de dormir; o outro, a sala de jantar, e o terceiro…Não adivinha?… Não, não pode adivinhar…
- Noutras circunstâncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca…
- Noutras circunstâncias. Agora não leio. Vou morrer. Ouça: a casa é assoalhada. As casas são naturalmente assoalhadas, não é?
- Claro.
- Sim, mas esse quarto não é assoalhado.
- Mais um espanto para o capataz – disse eu sorrindo.
- E para si também.
- Também para mim. Por que não assoalha esse quarto?
- Durante um ano vou viver naquela montanha, na mata, na terra arenosa diante do mar. Vou entrar e sair da casa e vaguear por esses lugares todos. E então sentirei que não devo sair mais, e ficarei em casa andando de um quarto para outro.
- No quarto sem soalho, também?
Não respondeu.
- Lembra-se de lhe ter falado no vento marítimo batendo nos pinheiros? E na alta montanha, intransitável atrás da casa?
- Lembro-me. Conheço o sítio, já lhe disse.
- O barulho do mar e do vento. A montanha, a ideia da montanha impraticável. E depois a terra arenosa, por ali fora. E a solidão. E sentir sobretudo que já não pode haver medo. Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si. E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão. Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e passando por mim. E então poderei morrer.



Herberto Helder
Os Passos Em Volta
Editora Estampa, 1963 

A Noite

A noite treme diante da janela e quer trespassar-me o coração,
gritando os nomes que eu infamei.
Oh, esses nomes que em cada cruz estão gravados e conspurcam o meu
trabalho diário.

Sei que me hei-de levantar e destruir a minha cama
e com a cama os sonhos que cresceram no meu cabelo para setenta anos.

Hei-de levantar-me e recitar o meu verso
para os mendigos que vivem de abandono,
nas ruas das grandes lojas. Nas ruas
em que as mulheres enganam a sua carne por um dia de feira.
Essas ruas que foram feitas com o trigo do meu pai
e com a pobreza da minha mãe,
que se cortou no braço com uma foice e parecia então
o próprio sol

Oh, a noite que me trespassa o coração
com todos os que eu infamei...



Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

Caridade

As senhoras da sociedade
deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu.


Depois das contas bem feitas
bem tiradas as despesas
arranjou um namorado
a mais nova das Fonsecas;
esteve bem a viscondessa,
veio o nome e o retrato
da comissão nos jornais,
e o Doutor, o Menezes,
o senhor desembargador,
estiveram muito engraçados,
dançaram o tiro-liro
já meio-tombados...


Parece que ainda sobrou
algum dinheiro para chita
para vestir a pobreza
numa festa comovente
com discursos de homenagem
e uma missa...


a que assistiu toda a gente.


Joaquim Namorado

Oração na boa

abaixo a caridade e o amor
parido em laboratório
e muito cuidado com o senhor
tu és pó e se não tiveres juízo
ao pó voltarás
cordeiro de deus devolve
as seringas imediatamente
nunca digas desta não snifarás
porque sobre a tua pedra
ninguém constrói a sua
não comungues dessa
olhas as hóstias são ácidos
pega na escova de dentes
no cosmos e na miúda
nada será como dantes
como penitência compra
um citroen haxixe
e reza 24 prestações
faz-te à estrada põe-te na vida
por teu risco e conta



Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses
Quasi Edições, 2002

Palavrão

Não, não se fala mal
português em portugal
não se diz caralho
a torto e a direito
ou vai sempre a direito
ou só se diz quando
a coisa dá para o torto
não, não se fala mal
o português no Porto
e se um filho da puta
chama a um lisboeta
cabrão
é porque os dois o são
e por isso não é palavrão
não, não se fala mal
português em portugal
e se alguém só pensa
não diz que se foda
é porque você ouviu mal



Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses
Quasi Edições, 2002
não some, que eu lhe procuro, e lhe boto
faca à garganta, ou lhe boto
na cabeleira tanta tanto fogo que você vira incêndio
em que se não tem mão, puta,
eu sei mas não me importa, quero é te apanhar
em uma braçada como de espuma,
mas se some eu lhe dano, essa sim, a puta de sua vida,
alta criatura chegada na terra muda,
em todo lado,
o dia todo,
a noite toda,
como se vê que uma árvore tem tanta folha luzindo
em toda parte dela e do vento e do tempo
e de minha ideia,
não some não, que eu desmundo
cada sítio do mundo onde
você estava ou está ou há-de estar, e comunico só do toque
que lhe ponho num mamilo,
no umbigo,
no clitóris,
na unha mindinha do pé esquerdo,
só porque tu estremece dos estudos de meus dedos exultantes,
não some nunca, fica morrendo de meu sopro,
ou dá luz como folha contada uma por cima de outra
que é isso: puta?
pequena se fôr às raízes latinas,
mas tudo cresceu e tamanho, grão de cobre
esparzido pelas capitais do corpo: púbis, cabeça
porque você é tão cerrada em sua vida própria,
trigo na noite,
excessiva beleza terrestre bruxuleando um pouco adentro,
que bèsteira de lhe chamar de puta,
de pequena
ou mesmo se lhe chame de grande puta,
se der o fora
ai dolor!
se sabedes novas da minha amiga, socôrro de minha baixa biografia.
ai Deus e u é?
vou à procura, encontro, jógo
vitríolo em teu rosto, desfiguro, ou com o calor da mão te lavro
por você acima,
casa ardendo cheia de uma estrela incalculável,
ah minha boca lhe come externa de nenhuma roupa sôbre que
carne soberba!
das plantas dos pés às pálpebras,
inteira,
e outra vez dos giolhos ou joelhos, como queira, à côna, e da côna,
divertimento linguístico lato sensu,
ao rés da penugem na testa rápida, amor,
não provoque, não some, que esse
beijo que agora coméço é para não
acabar nunca,
não queira que eu vá crer em Deus e pedir milagre,
fique, tão puta quanto seja, com
seu jeito de água marítima,
balançando, menininha, barca bêbeda,
mas enredada em mim como o alimento luminoso.
ah se incendeie a gente um do outro, que morte
ou vida mais total
não há, não some não, amor
da puta de minha vida indistinta,
noite onde me envôlvo para sempre,
que simples, contudo, com tudo isso, que é se cruzar com o mundo,
fique, fica junto, funda fêmea, que você já me está
fundada no sangue desde que outrora, e agora, e na hora da nossa



Herberto Helder
A Faca Não Corta o Fogo
Assírio & Alvim, 2008

Sidi amar no inverno

Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.

Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.



Paul Bowles
Poemas
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

Polémica

Concordo inteiramente com o que dizes.
Quando as nuvens e as palavras se separam
O ar estremece e o cosmos fragmenta-se.
Enquanto não se conhecer a intenção
Nenhum caminho será descoberto.
A Índia era pó, um leopardo à sombra de uma pedra.
Cheguei à entrada da cidade
E aí estava ela, branca, à luz do sol.

As paisagens são absurdas enquanto não se aceitam.
Salaamed humedeceu os lábios e colou-os ao pó.
Ele é o vale e o vale é ele.
Mas até à morte negar-te-ei o direito de o dizer.



Paul Bowles
Poemas
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

Notícia acróstica

Os quartos são feitos para regressar a eles
Depois de o tempo passar.
Pandemónio, vozes silenciosas apenas um instante
De choque. O sal queima,
O medo jaz como seda sob a luz do sol.
As sombras vivem para cegar a criança.
De agora em diante a casa nunca estará vazia;
Mesmo o hóspede exangue contará
Os amanheceres de chuva antes da sua partida.
Algures significa andar uma milha ou mais para Este.

Apesar do que se diz noutros lugares,
Um desesperado crepúsculo traz uma outra paz.
Veias mais longas,
Um anfitrião coxo,
Servem para cativar.
A alquimia acabou com o cobalto.
Hoje em dia os herejes são estrangulados.
Evidência: a compulsividade é o destino
E qualquer vento contra cheira a Deus.
Rio abaixo está o caminho; concordas? Aguenta.



Paul Bowles
Poemas
Assírio & Alvim, 2008
Tradução de José Agostinho Baptista

O meu pai

bebo muito vinho
bebo muita aguardente
ressono
só sei berrar
não me lavo
sou porco
não tenho amigos
não sei dar educação aos meus filhos
sou tudo um pouco graças a deus



João Almeida
Glória e Eternidade
Teatro de Vila Real, 2009

A família

Vamos à pesca
disse o pai
para os três filhos
vamos à pesca do esturjão
nada melhor do que pescar
para conservar
a união familiar
a mãe deu-lhe razão
e preparou
sem mais detença
um bom farnel
sopa de couves com feijão
para ir também
à pescaria do esturjão
e a mãe e o pai
e os três filhos
foram à pesca
do esturjão
todos atentos
satisfeitíssimos
que bom pescar
o esturjão!
que bom comer
o belo farnel
sopa de couves com feijão!
e foi então
que apanharam
um magnífico esturjão
que logo quiseram
ali fritar
mas enganaram-se na fritada
e zás fritaram o velho pai
apetitoso
muito melhor
mais saboroso
do que o esturjão


vamos para casa
disse o esturjão.



Mário-Henrique Leiria
«Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um pedaço do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer de tão cortada nos dois lados.»



Herberto Helder
Photomaton & Vox
Assírio & Alvim, 1995

Coração couraça

Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque vieste recolher a tua imagem
e és melhor do que qualquer imagem tua
porque és linda do corpo até à alma
porque és boa da alma até mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça

porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo

porque tu existes sempre onde quer
mas existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa por duas
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.

Mario Benedetti
Tradução A.M.

Tu

Tu
enlouqueces-me maravilhas-me atrapalhas-me apaixonas-me cegas-me confundes-me. Tu inspiras-me.
Tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu .....

Quero tanto de ti e tão próximo que anseio que fosses o ar, o chão, as paredes, tudo.

Que tudo o que tocasse fossem os teus braços.
Que tudo o que sentisse fossem os teus lábios.

Como quando fecho os olhos e tudo o que não vejo és tu.
Como quando não durmo e tudo o que sonho és tu.

Contigo não consigo respirar. Sem ti não consigo viver.

Quero estar tão dentro de ti que nem a luz do dia exista para mim.
Quero abraçar-te tanto que todo o mundo colapse
e desapareça num pequeno ponto entre os meus braços.

Toca-me com as tuas mãos.
Faz-me desaparecer com a tua pele.
Sufoca-me na tua língua.
Arrasta-me pelo ar com o teu perfume.
Mata-me de vez.

Tu
se fosses chuva, do céu só cairiam pérolas ...
E até o chão gritaria de prazer.


Maria Teresa Horta

Não é tarde

O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes
eu fecho mais a porta.

Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro
funciona! Poderoso combustível
é o corpo. Acende deste lado.

Ainda não é tarde, foi agora anunciado
pela rádio, são dezoito e vinte e cinco.
Respira-nos, repara, a ilusão

de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despe
vai perdendo o nosso número de telefone.



José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui
&etc, 2002

Daqui deste deserto em que persisto

Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto

As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada



António Ramos Rosa
O Poeta na rua
Quasi Edições

Alguém que não eu

Alguém que não eu cobra a conta
das horas felizes, das tardes
em que teve o amor como aliado,
das noites lavradas corpo a corpo.


Alguém que não eu sai de casa
e quebra os grilhões, como quem,
após cumprir com sua dor, um dia
qualquer se escapou da morte.


Esse alguém levanta
o coração para o céu;
abarca o horizonte
e escolhe seu destino,
embora no fim penetre
dentro de mim e escreva.


María Sanz
Tradução A.M.

Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
__________________________________________o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
__________________________________________outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
__________________________________________que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
__________________________________________ outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
__________________________________________a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui



Ruy Belo
Toda a Terra
Editorial Presença, 2000
audio

País de muito mar

Somos um país pequeno e pobre e que não tem
senão o mar
muito passado e muita História e cada vez menos
memória
país que já não sabe quem é quem
país de tantos tão pequenos
país a passar
para o outro lado de si mesmo e para a margem
onde já não quer chegar. País de muito mar
e pouca viagem.



Manuel Alegre

Um Nome

Com os anos, perderas talvez o rumo. Ou era apenas medo, o receio de te medires com os lugares que foram teus e também perdeste. Um dia voltaste. Insanável, o tempo esvaíra-se. Porque tu e o tempo trabalham, bem sabes, em sentidos opostos.
Da casa, hasteada frente ao vento, restavam os pesados alicerces, as paredes ancoradas entre cal e musgo, a pálida face exterior gangrenada. Ruína foi o nome que melhor te serviu, então, para definir com rigor o cenário construído. Para lá da estrada, do outro lado do muro, buscavas as árvores que contigo cresceram e emolduravam a cintura larga do terreno. Da acácia e da figueira, mortas, subsistia a memória crispada das flores de sabão com que lavavas os ócios da infância vivida a tempo inteiro. O velho carvalho, plantando à beira do caminho, projectava sobre as horas a sombra lenta da ausência. Quando o fotografaste, o passado ressurgiu, compacto, no rectângulo da moldura verde.
Era outra vez dezembro. Viajavas de novo, sem sustos, ao coração do bosque, lá onde uma noite, te serviram longamente uma rosa de sol embriagada, tinta do sangue espesso das amoras. Sabes hoje que nesse gesto festejavas o sentido e a afirmação da vida, a sua plenitude. Por isso o elegeste como emblema.
Sob a poeira e a cinza do cepo ardido apenas afloravam agora as raízes do cedro castigado pelo aríete do tempo. Morreu o soto, os eucaliptos foram sacrificados, a água da fonte apodreceu. A imagem que ali colhes é um tecido esgarçado de limos e girinos, uma toalha encrespada a que só magoadamente podes limpar o rosto.
Ruína, disseste. Sobre ela colocas uma lápide. Sobre a lápide, um nome.
O teu.




Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996

Uma Certa Quantidade

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muitos estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro.




Mário Cesariny
Pena Capital
Assírio & Alvim, 2004

Espera-me

Espera-me e eu voltarei,
mas espera-me muito.
Espera-me quando cair a neve
e chegarem as chuvas tristes,
quando chegar o calor,
não deixes de esperar.
Espera-me, quando já
ninguém esperar e se tiver
esquecido já o ontem.
Espera-me mesmo que as cartas
não cheguem de longe.
Espera-me quando todos
estiverem já fartos de esperar.
Espera-me e eu voltarei,
não ames – peço-te –
quem repetir de memória
que é tempo já de olvidar;
mesmo que mãe e filho julguem
que eu não existo mais.
Deixa que os amigos, ao lume,
se cansem de esperar e bebam
vinho amargo em memória de mim.
Espera-me e não
te apresses a beber com eles.
Espera-me e eu voltarei,
para que a morte se encha de raiva.
O que nunca me esquecer
dirá talvez de mim: coitado, teve sorte.
Jamais compreenderão
aqueles que jamais esperaram.
Tu é que me salvaste do fogo.
De como sobrevivi
saberemos tu e eu,
porque simplesmente me esperaste,
como ninguém me esperou.


Konstantin Simonov
Tradução A.M.

Narração

Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.

A outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.

Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.

Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro de espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-nos dizer do sono
imagens de horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.

Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.

Habituámo-nos a ele não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.



Yorgos Seferis
Poemas Escolhidos
Relógio D'Água, 1993
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis

Metafísica do encontro

Se não tivesse sido a esquadra americana, que fez esgotar a cerveja na cidade, eu não teria ido à outra banda beber um fino…
Não nos teríamos encontrado, por conseguinte.
Mas, também, se o teu isqueiro não se tem avariado e a tua voz não fosse - até na adversidade! - manselinha (- “Por favor…” Nas comissuras dos lábios, tanto destino cruzado! - “Muito obrigado, Senhor…”) sequer teria reparado em ti…
Qual é a explicação da tua voz?
Herdaste-a de teus pais?
De teus avós?
De que Senhora Aónia és descendente?
“Poeta desempregado…”, espalham para aí os teus.
Mas se não fosse um poeta… quem te houvera de amar, ó minha feia?
E empregado… como é que eu poderia, às quatro horas da tarde - numa quinta-feira - estar, digam-me lá, na outra banda?
Os marujos… e se eles eram cupidos… (crescidos, americanos, vestidos à marinheira…) que nos feriram com uma seta, teleguiada, certeira…


Foram as manobras da NATO…
Foi um isqueiro empanado…
Foram as voltas do Mundo…
Foi uma loucura (dizem os amigos)… que engendrou - cegamente - o nosso encontro em Cacilhas.
Coisa tão bela e absurda como o aparecimento do Homem!


José Fernandes Fafe

A falta que me fazem

Os meus amigos são tão poucos e às vezes
um a um quase me esqueço de lhes dizer
a falta que me fazem como quando por
exemplo numa sexta-feira à noite eu entro no café
e a cerveja nem me sabe nem
o caralho.


A alegria é cada vez mais com a passagem
dos anos essa ave rara que só
numa corrida com os
filhos num bosque de bétulas ou
numa tarde de domingo a desenhar com
eles um satélite ou num passeio à noite
na areia molhada da praia nas marés do
equinócio de forma imprevista verdadeiramente
pode visitar-nos.


Mas esta de que falo só com os meus amigos e
é inominável que dizer dessa paz imensa
dessa felicidade quase sem imagens que é
sentarmo-nos à roda de uma
mesa e nem dizermos nada.


Os meus amigos são tão poucos que é quase um
crime separarmo-nos assim deixarmos que às
vezes um número de telefone um círculo vermelho
a marcador no mapa do acp
uma carta sejam o mais que pode trazer às
nossas vidas essa ilusão de pertencer-nos o
mundo todo de não haver uma mulher uma
estrela uma cidade que não sejam
nossas para sempre.


Os meus amigos são tão poucos tão imensos que
às vezes apetece-me deixar o computador ligado
a meio da tarde meter-me no carro pagar
a portagem da auto-estrada permanentemente em
obras de conservação e procurá-los com
a agenda aberta nos seus nomes acordá-los
antes da alba só para lhes dizer
a falta que me fazem.


José Carlos Barros

A cidade

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.


José Carlos Ary dos Santos
Obra Poética
Edições Avante, 1994
A chuva no teu rosto é um milagre de cristais
Não conheço um relâmpago que não nasça nos teus olhos



Luís Falcão

Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos
Assírio & Alvim, 2007
Fizeste da tua vida
Uma catedral abandonada
Horas esquecidas
Em adoração nocturna
Pedindo silêncio
A tudo o que perdeste



Luís Falcão
Pétalas Negras Ardem nos Teus Olhos
Assírio & Alvim, 2007

Do livro do êxodo

O deserto alongava-se até à idade
De uma geração
Nós éramos a única planta das areias
A partida contínua e adiada. Quantos
E quantos passos não estivemos descalços
Procurando nos pés gretados a nesga
Para o regresso
As crianças perguntavam o que era a nata e o leite
Perguntavam se as mães eram semelhantes aos favos
As mulheres calculavam em pensamento
A altura que teriam os filhos entre as árvores
Quando chegassem à terra distante do mel



Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
os poetas devem morrer de tuberculose, na miséria
isso ou artista doméstico
fato de treino e perversões de periferia
o resto é abaixo de gato

eis onde estou e pergunto
vais abandonar este poema
o verso que redime não to prometo

procuro nos tantos livros amontoados
nos tantos poemas à espera nas feiras ao sol e à chuva
pode ser que surja um olho avulso
a palavra invisível do primeiro verso

Herodes mata o que nasce
como todos os dias as nossas mãos.



João Almeida
Glória e Eternidade
Teatro de Vila Real, 2009

Hermann Broch

Um homem caminhava depressa. Havia a chuva por cima, lenta mas constante; e o chão por baixo: a caminhar tão rápido como o homem, mas em sentido inverso. A chuva ao cair no medo de um homem faz dele mais forte, e ao cair no metal – em cima de um carro, por exemplo – faz dele mais fraco.
O metal enfraquece com a chuva; e os homens, como algumas plantas, crescem com certa água em certa inclinação.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Ezra Pound

Um violino tocado por um corpo de estômago grosseiro.
A espiritualidade avança no organismo apesar do aparelho mecânico colocado no coração. O By-pass não interfere com Deus: os batimentos dos dois mundos seguem caminhos diferentes. Os médicos não recomendam canções; e cometem ainda outros erros.
Negócios com os beijos não se fazem, caro Lorde, a não ser nas boas sociedades.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Boris Vian

O meu saxofone é uma garrafa de rum que me faz cantar, mesmo com a boca cheia de garrafa.E tenho bombas atómicas em comprimidos que se tomam: dois depois do almoço, um após o lanche, e um antes de deitar. Pode um método de destruição maciça ser individualizado sem perder as suas principais características? Eis uma pergunta interessante a que ainda não se deu a devida atenção.
E havia um homem cujo saxofone não tinha notas, mas metáforas.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Adorno

Dizer tudo numa frase, eis a coragem de quem escreve. Ameaçar dizer tudo nas frases seguintes, eis a cobardia. O tédio produz documentos. Cada objecto tem uma filosofia, e eis assim o aparecimento dos gestos nos homens. Quem surgiu primeiro o objecto ou o movimento com que o seguras?
Apesar de tudo, o silêncio tem menos palavras que uma palavra.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

André Breton

Há uma tendência de cozinheiros entre aqueles que pensam.
Nenhuma mistura é vedada. Se colocarmos sal e açúcar sobre o mesmo pão, o pão poderá hesitar de gosto, e poderá hesitar de conceito sobre si mesmo, e poderá hesitar ainda em frente ao espelho, mas hesitar não é morrer, e ser duplo não é ser zero, e ser estranho não é só o cadáver que o é. Nenhuma grandeza se inicia com a soma de duas coisas iguais. Eis.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Charles Bukowski

Nenhum carteiro sério deixará as tuas cartas húmidas — um canto que seja — quando o segundo dilúvio vier.
No primeiro dilúvio, acima das águas, salvaram-se em barco, os animais, as mulheres e os homens. Afogadas ficaram as plantas e ainda toda a correspondência entre o primeiro homem e a primeira mulher. Se antes do dilúvio a literatura era boa ou não, nunca se saberá. Pois salvaram-se os animais, um homem e uma mulher (e ainda um velho, que praticamente não conta), mas desprezou-se a documentação escrita.
Entre certos homens que conheço, certas mulheres com quem dormi e alguma literatura, eu não hesitaria no momento do segundo dilúvio: deixava afogar esses sujeitos e salvava a literatura. Mas tal é apenas uma opinião.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Jacques Prévert

A mulher pode seduzir de duas formas: ou olhando os olhos do outro, ou olhando os lábios do outro. Se olhar os olhos a sedução é lenta, se olhar os lábios a sedução é rápida. Entre o olhar nos olhos, e a nudez, a distância temporal é maior.
Entre a nudez mútua e a fornicação (também mútua) pode ocorrer um intervalo de seis dias, se as duas pessoas em questão forem envergonhadas e hesitantes. Seis dias são suficientes para dar doze voltas ao mundo, porém, por vezes, um órgão demora esse tempo a chegar ao destino amoroso.
O mundo só não é desequilibrado e surpreendente nos gráficos da administração central.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Jean Genet

Havia um homem que gostava mais de flores do que o jardim gostava desse homem.
Era um anjo que seduzia pelos cotovelos como fazem homens e mulheres nos autocarros cheios, em cidades onde só se ama quando se é empurrado.
Nenhuma vítima tem menos ossos que o seu carrasco, e a órgãos principais idem. A diferença é que o carrasco tem a lâmina, e a vítima tem o pescoço mesmo a jeito. Mauzinhos e maus são todos, bons é que não conheço.
Era um homem que parecia vender flores, mas reparando bem eram as flores que o vendiam a ele. Era um prostituto, ou um romântico.



Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004

Biografia

A vida que murmura. A vida aberta.
A vida sorridente e sempre inquieta.
A vida que foge, virando a cabeça,
tentadora ou, talvez, apenas miúda travessa.
A vida sem mais. A vida cega,
que quer ser vivida sem maiores consequências,
sem espaventos, sem históricas histerias,
sem dores transcendentes nem alegrias triunfais,
ligeira, apenas ligeira, simplesmente bela
ou lá como soi dizer-se na terra.


Gabriel Celaya
Penúltimos Poemas (1982)
Tradução A.M.

No caminho da morte

No caminho da Morte,
a minha mãe encontrou uma grande massa glaciar:
Ela quis falar,
Já era tarde;
Uma grande massa glaciar de algodão.

Olhou-nos a mim e ao meu irmão,
E depois chorou.

Dissemos-lhe - mentira verdadeiramente absurda - que compreendíamos.
Ela então esboçou um sorriso tão gracioso de rapariga,
Que era realmente ela,
Um sorriso muito bonito quase travesso;
Depois foi apanhada pelo Opaco.



Henri Michaux
de Lointain Intérieur
Antologia
Relógio d’Água, 1999
Tradução de Margarida Vale de Gato

Voltar

Hesitei em voltar a casa dos meus pais. Como é que eles fazem quando chove? pensei eu. Depois lembrei-me que havia um tecto no meu quarto. "Não importa!" e, desconfiado, não quis voltar.
É em vão que agora me chamam. Assobiam, assobiam na noite. Mas é em vão que utilizam o silêncio da noite parar chegar até mim. É absolutamente em vão.



Henri Michaux
de Entre Centre et Absence
Antologia
Relógio d’Água, 1999
Tradução de Margarida Vale de Gato


Eu antigamente era muito nervoso. Eis-me num novo caminho.
Meto uma maçã em cima da mesa. Depois meto-me dentro dessa maçã. Que tranquilidade!
Parece simples. No entanto, há já vinte anos que o tentava e não o teria conseguido, em querendo começar por aí. Porquê? Julgar-me-ia talvez humilhado, dado o seu pequeno tamanho e a sua vida opaca e lenta. É possível. Os pensamentos da camada inferior são raramente belos.
Por isso, comecei de outro modo e uni-me ao Escaut.
O Escaut, em Anvers, onde o encontrei, é grande e imponente e gera uma grande corrente. Apanha os navios de alto bordo que se apresentam. É um rio, dos verdadeiros.
Decidi tornar-me um com ele. Permanecia no cais todas as horas do dia. Mas dispersava-me em várias considerações inúteis.
E além disso, sem querer, olhava para as mulheres de tempos a tempos, e isso é coisa que um rio não permite, nem uma maçã, nem nada na natureza.
O Escaut, portanto, e mil sensações. Que fazer? De repente, tendo renunciado a tudo, achei-me... não diria no seu lugar, porque, para falar verdade, nunca se tratou disso. Ele corre incessantemente (aí está uma grande dificuldade) e desliza para a Holanda onde encontrará o mar à altitude zero.
Regresso à maçã. Aí, mais uma vez, houve tentativas, experiências; é uma longa história. Partir não é muito cómodo, e explicá-lo muito menos.
Mas posso dizer-vos numa palavra. Sofrer é a palavra.
Quando cheguei à maçã, estava gelado.



Henri Michaux
de Entre Centre et Absence
Antologia
Relógio d’Água, 1999
Tradução de Margarida Vale de Gato

Mundo em bulício

À cidade deu-lhe para passear.
As lojas dão as mãos em círculos vastos.
Prazenteiro, um casebre meteu-se a butes.
Coxeia o tribunal. O teatro vai de rastos.

Nota-se um unânime remeximento,
Um jordaneio, um ir e vir descomunal
De palácio, de bares, de cinemas.
Nem um imóvel ficou no local.

Rígido, boto figura numa esquina.
Qiosque redondo que um verde chapéu abriga.
Uma igreja saúda, um tribunal se inclina

Ou um banho público em fuga se sustém.
Hoje conto e reconto cada vintém
E estendo-lhes um jornal da minha barriga.



Gerrit Komrij
Contrabando - Uma antologia poética
Assírio & Alvim, 2005

Descrição honesta de mim próprio bebendo um whisky no aeroporto, digamos de Mineápolis

Os meus ouvidos escutam cada vez menos as conversas, os meus
_______[olhos enfraquecem, continuando insaciados.

Vejo as pernas delas de mini-saia, de calças
_____________[ou de tecidos vaporosos,

Espreito cada uma, os seus rabos e coxas, pensativo,
________________[embalado por sonhos porno.

Ó lascivo velho jarreta, estás com os pés para a cova
____[e não para jogos e brincadeiras de juventude.

Mas não é verdade, faço apenas aquilo que sempre fiz,
______[compondo as cenas desta terra, movido pela
_______________________ [imaginação erótica.



Czeslaw Milosz
Alguns gostam de poesia
- Antologia - Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska
Cavalo de Ferro, 2004
Tradução de Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves

É claro

É claro que não dizia o que realmente pensava,
pois os mortais merecem respeito
e os segredos da nossa miséria carnal
não podem revelar-se na fala nem na escrita.
Aos vacilantes, fracos e inseguros foi dada uma tarefa:
erguerem-se dois centímetros acima da sua cabeça
e dizerem a quem desespera:
«eu também chorava assim a minha sina».



Czeslaw Milosz
Alguns gostam de poesia
- Antologia - Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska
Cavalo de Ferro, 2004
Tradução de Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves

Aquele verão da minha juventude

E que é que ficou daquele verão antigo
nas costas da Grécia?
Que resta em mim do único verão da minha vida?
Se eu pudesse escolher de quanto vivi
algum lugar e o tempo que o prende,
a sua milagrosa companhia é para ali que me arrasta,
onde ser feliz era a natural razão de estar com vida.


Perdura a experiência, como um quarto fechado da infância;
não resta já a lembrança de dias sucessivos
nesta sucessão medíocre dos anos.
Hoje vivo esta carência,
e apuro do engano algum resgate
que me permita olhar ainda o mundo
com amor necessário;
e assim saber-me digno do sonho da vida.


De quanto foi ventura, desse lugar de fortuna,
tomo avaramente
sempre uma mesma imagem:
seus cabelos movidos pelo vento
e o olhar fixo dentro do mar.
Apenas esse momento indiferente.
Selada nele, a vida.


Francisco Brines
Tradução A.M.