Um Nome

Com os anos, perderas talvez o rumo. Ou era apenas medo, o receio de te medires com os lugares que foram teus e também perdeste. Um dia voltaste. Insanável, o tempo esvaíra-se. Porque tu e o tempo trabalham, bem sabes, em sentidos opostos.
Da casa, hasteada frente ao vento, restavam os pesados alicerces, as paredes ancoradas entre cal e musgo, a pálida face exterior gangrenada. Ruína foi o nome que melhor te serviu, então, para definir com rigor o cenário construído. Para lá da estrada, do outro lado do muro, buscavas as árvores que contigo cresceram e emolduravam a cintura larga do terreno. Da acácia e da figueira, mortas, subsistia a memória crispada das flores de sabão com que lavavas os ócios da infância vivida a tempo inteiro. O velho carvalho, plantando à beira do caminho, projectava sobre as horas a sombra lenta da ausência. Quando o fotografaste, o passado ressurgiu, compacto, no rectângulo da moldura verde.
Era outra vez dezembro. Viajavas de novo, sem sustos, ao coração do bosque, lá onde uma noite, te serviram longamente uma rosa de sol embriagada, tinta do sangue espesso das amoras. Sabes hoje que nesse gesto festejavas o sentido e a afirmação da vida, a sua plenitude. Por isso o elegeste como emblema.
Sob a poeira e a cinza do cepo ardido apenas afloravam agora as raízes do cedro castigado pelo aríete do tempo. Morreu o soto, os eucaliptos foram sacrificados, a água da fonte apodreceu. A imagem que ali colhes é um tecido esgarçado de limos e girinos, uma toalha encrespada a que só magoadamente podes limpar o rosto.
Ruína, disseste. Sobre ela colocas uma lápide. Sobre a lápide, um nome.
O teu.




Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996

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