- A que se referia?
- À morte – respondi.
- Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a pensar o mesmo.
- Pensamos todos no mesmo a partir de certa altura.
- Talvez – murmurou, e a voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos de igual maneira. Sou forte. Por isso é que penso nela. Detesto a fraqueza que se remedeia na imaginação, nas hipóteses. Não creio em nada. Não desejo crer em nada.
- Pensa que vai morrer quando quiser?
Olhou-me em cheio, sorriu. Tinha uma viva e nobre cabeça de homem antigo. Parecia saber muito. Não devia acreditar em nada. Notava-se no olhar culto e virilmente triste.
- É isso. Trabalho na minha morte. Um homem verdadeiro tem direitos e deveres para com a sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
- Sim, já mo disse.
- Conhece o sítio? – E as palavras subentendiam ramificações de sentido, outras intenções. Mas a voz era imperturbável. Este homem morreria da sua própria morte, dentro dela.
- Conheço. Fica na outra costa da Ilha. Há a montanha sem árvores. Pedra e urzes. Pavoroso. Defronte fica o mar. O mar lá é bravio.
- É água cinzenta e branca. E atrás há a grande montanha por onde só andam cabras. Mas na planície, à direita, crescem as árvores onde o vento do mar vem bater. De noite tudo aquilo vibra e uiva. E a terra arenosa estende-se pelo outro lado de fora. Quando há tempestade é de uma beleza diabólica. Bom para nos sentirmos sós, para saber se ainda existe o orgulho do medo.
- Compreendo que construa aí a sua casa.
- Construo a casa muito devagar. É a minha última tarefa. Forço os operários a trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou tão caro uma casa de um só piso. Quando ficar pronta já nada mais terei a fazer. Seria estúpido procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. É de sangue. Meu avô correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai andou pelas guerras depois de me ter gerado, e lá morreu. Homens que fizeram uma tarefa e nela puseram o sentido da sua vida. E deram-se por cumpridos, e regressaram ou morreram. Sabedoria, não é? Não quero ser fútil. É o único pecado do espírito. Ponho a minha força toda nas razões da vida. Isto quer dizer que me preocupam a oportunidade e a qualidade da minha morte. Pareço…enfim, digamos, pareço…solene?…
Riu.
- Sou, como direi?, sou um homem religioso.
- No entanto…
- Claro, não acredito em nada disso…nessas coisas…imortalidade da alma…Deus, o barroco Deus teológico… o bem comezinho, o mal comezinho…Detestável, tudo isso, as crenças e virtudes da baixa religiosidade.
- Talvez creia – disse eu – que vida e morte se abram uma para a outra, se alimentem mutuamente. Que seja cada uma delas uma espécie de duplo da outra. Se animem e, por assim dizer, se justifiquem e signifiquem entre si.
- Quer exprimi-lo desse modo? – As mãos traçaram subtilmente um gesto de irónica concessão. – Talvez seja isso… Aos vinte e cinco anos fui viajar. Estive em muitos países. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países. O homem é estúpido. E precisa que o amem, precisa amar. Um pouco repugnante, não? Mas pode-se amá-lo, assim repugnante. Depois parei, vim para a Ilha. E os círculos foram-se apertando. Hoje não saio deste café e do hotel, não estou a seguir o andamento das obras. Daqui a algum tempo mudo-me para a casa. Depois… Compreende o que digo quando falo de espírito religioso?
- Sim, parece-me que sim…
- A casa tem três quartos, além de cozinha, casa de banho e despensa. Um é o quarto de dormir; o outro, a sala de jantar, e o terceiro…Não adivinha?… Não, não pode adivinhar…
- Noutras circunstâncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca…
- Noutras circunstâncias. Agora não leio. Vou morrer. Ouça: a casa é assoalhada. As casas são naturalmente assoalhadas, não é?
- Claro.
- Sim, mas esse quarto não é assoalhado.
- Mais um espanto para o capataz – disse eu sorrindo.
- E para si também.
- Também para mim. Por que não assoalha esse quarto?
- Durante um ano vou viver naquela montanha, na mata, na terra arenosa diante do mar. Vou entrar e sair da casa e vaguear por esses lugares todos. E então sentirei que não devo sair mais, e ficarei em casa andando de um quarto para outro.
- No quarto sem soalho, também?
Não respondeu.
- Lembra-se de lhe ter falado no vento marítimo batendo nos pinheiros? E na alta montanha, intransitável atrás da casa?
- Lembro-me. Conheço o sítio, já lhe disse.
- O barulho do mar e do vento. A montanha, a ideia da montanha impraticável. E depois a terra arenosa, por ali fora. E a solidão. E sentir sobretudo que já não pode haver medo. Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si. E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão. Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e passando por mim. E então poderei morrer.
- À morte – respondi.
- Sim, eu também falava da morte. Mas surpreendeu-me que você estivesse a pensar o mesmo.
- Pensamos todos no mesmo a partir de certa altura.
- Talvez – murmurou, e a voz tinha uma ponta de orgulho. – Mas nem todos de igual maneira. Sou forte. Por isso é que penso nela. Detesto a fraqueza que se remedeia na imaginação, nas hipóteses. Não creio em nada. Não desejo crer em nada.
- Pensa que vai morrer quando quiser?
Olhou-me em cheio, sorriu. Tinha uma viva e nobre cabeça de homem antigo. Parecia saber muito. Não devia acreditar em nada. Notava-se no olhar culto e virilmente triste.
- É isso. Trabalho na minha morte. Um homem verdadeiro tem direitos e deveres para com a sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
- Sim, já mo disse.
- Conhece o sítio? – E as palavras subentendiam ramificações de sentido, outras intenções. Mas a voz era imperturbável. Este homem morreria da sua própria morte, dentro dela.
- Conheço. Fica na outra costa da Ilha. Há a montanha sem árvores. Pedra e urzes. Pavoroso. Defronte fica o mar. O mar lá é bravio.
- É água cinzenta e branca. E atrás há a grande montanha por onde só andam cabras. Mas na planície, à direita, crescem as árvores onde o vento do mar vem bater. De noite tudo aquilo vibra e uiva. E a terra arenosa estende-se pelo outro lado de fora. Quando há tempestade é de uma beleza diabólica. Bom para nos sentirmos sós, para saber se ainda existe o orgulho do medo.
- Compreendo que construa aí a sua casa.
- Construo a casa muito devagar. É a minha última tarefa. Forço os operários a trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou tão caro uma casa de um só piso. Quando ficar pronta já nada mais terei a fazer. Seria estúpido procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. É de sangue. Meu avô correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai andou pelas guerras depois de me ter gerado, e lá morreu. Homens que fizeram uma tarefa e nela puseram o sentido da sua vida. E deram-se por cumpridos, e regressaram ou morreram. Sabedoria, não é? Não quero ser fútil. É o único pecado do espírito. Ponho a minha força toda nas razões da vida. Isto quer dizer que me preocupam a oportunidade e a qualidade da minha morte. Pareço…enfim, digamos, pareço…solene?…
Riu.
- Sou, como direi?, sou um homem religioso.
- No entanto…
- Claro, não acredito em nada disso…nessas coisas…imortalidade da alma…Deus, o barroco Deus teológico… o bem comezinho, o mal comezinho…Detestável, tudo isso, as crenças e virtudes da baixa religiosidade.
- Talvez creia – disse eu – que vida e morte se abram uma para a outra, se alimentem mutuamente. Que seja cada uma delas uma espécie de duplo da outra. Se animem e, por assim dizer, se justifiquem e signifiquem entre si.
- Quer exprimi-lo desse modo? – As mãos traçaram subtilmente um gesto de irónica concessão. – Talvez seja isso… Aos vinte e cinco anos fui viajar. Estive em muitos países. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países. O homem é estúpido. E precisa que o amem, precisa amar. Um pouco repugnante, não? Mas pode-se amá-lo, assim repugnante. Depois parei, vim para a Ilha. E os círculos foram-se apertando. Hoje não saio deste café e do hotel, não estou a seguir o andamento das obras. Daqui a algum tempo mudo-me para a casa. Depois… Compreende o que digo quando falo de espírito religioso?
- Sim, parece-me que sim…
- A casa tem três quartos, além de cozinha, casa de banho e despensa. Um é o quarto de dormir; o outro, a sala de jantar, e o terceiro…Não adivinha?… Não, não pode adivinhar…
- Noutras circunstâncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca…
- Noutras circunstâncias. Agora não leio. Vou morrer. Ouça: a casa é assoalhada. As casas são naturalmente assoalhadas, não é?
- Claro.
- Sim, mas esse quarto não é assoalhado.
- Mais um espanto para o capataz – disse eu sorrindo.
- E para si também.
- Também para mim. Por que não assoalha esse quarto?
- Durante um ano vou viver naquela montanha, na mata, na terra arenosa diante do mar. Vou entrar e sair da casa e vaguear por esses lugares todos. E então sentirei que não devo sair mais, e ficarei em casa andando de um quarto para outro.
- No quarto sem soalho, também?
Não respondeu.
- Lembra-se de lhe ter falado no vento marítimo batendo nos pinheiros? E na alta montanha, intransitável atrás da casa?
- Lembro-me. Conheço o sítio, já lhe disse.
- O barulho do mar e do vento. A montanha, a ideia da montanha impraticável. E depois a terra arenosa, por ali fora. E a solidão. E sentir sobretudo que já não pode haver medo. Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si. E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão. Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e passando por mim. E então poderei morrer.
Herberto Helder
Os Passos Em Volta
Editora Estampa, 1963
Editora Estampa, 1963
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