Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado

17º dia

destruo os meus subúrbios e digo a solidão e crio mais solidão. Deitado na cama, olho o tecto e penso: é o mesmo de sempre, nem a minha infelicidade o transforma, é um pobre tecto de estuque com um fio eléctrico pendurado onde falta uma lâmpada. Na parede, à minha frente, há vestígios de uma estante que foi removida. Estou rodeado de sinais de falta e, como não tenho sono, eles tornam-se exorbitantes, não porque cresçam mas porque ficam cheios de fome

rezo, embora não seja crente. E faço por acreditar que o silêncio que se segue à minha prece é a voz de Deus. Até os enganos me confortam.

- há muitos por aqui, nesta época do ano
respondeu-te ele, e acrescentou:
- é o mês das cerejas e das ginjas

- dois whiskies de malte
- a marca do costume?
- a marca do costume.
e vimo-lo afastar-se pelo interior do vidro, pelo exterior

voz de pedro:
este é o tempo dos dramas omissos, um tempo simplificado pelo possível, escondemos da nossa voz o clamor dos mortos periféricos, não sabendo que a periferia nos é o coração, se os jovens ainda passeiam na margem dos rios, fazem-no curvados por uma doença capital que lhes contamina os gestos, ouvimos o som das explosões nas pedreiras, a atmosfera de cimento invade-nos com uma sede réptil e insinua-se-nos na saliva, transformando-a em lama, por isso gritamos uma dor plena de pó, moldada pelo depósito baço do pó, muitas vezes me foi este rio lugar de barcaças e cacilheiros, hoje, porém, é um animal acossado pelas margens, reduzido às letras que compõem um rio, tanto, que eu, próximo dele, me sinto estrangeiro, contraído contra o meu esqueleto pela sua estranheza, os automóveis passam por mim: casulos de música: e afastam-se, não deixando rastro desse som prisioneiro
tempo canibal



Rui Nunes
Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado
relógio d'Água, 1995

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