Um alphabeto de 1972

a
da mesa lavado o mar por cima o actor vê
através da janela o início das coisas mede o lado branco
das árvores no filme diz-põe os instrumentos intensos que
e atrás dele toda a casa equilibra o seu ruído
com o do mar em frente fora voando



b
o coração de vidro cerca a casa que olha o actor
por entre as suas veias de luz estende as mãos sobre
a madeira do dia e escuta

por cima da mesa
entre a janela e as coisas
um vulcão branco deflagra



c
o mar vem á altura das árvores que se inclinam
para dentro da casa o olhar de dentro para
fora do filme um touro com mil olhos bocas orelhas
vivo
fuzila os mortos



d
por dentro dos pulmões a água sobe como
por dentro das árvores invertidas numa fotografia
oscilando




e
as janelas revelam o actor enquanto o papel vibra
enrolando-se da chama até à cinza
da cinza até à voz maior chama
escrito no vento escrito na neve « tu escreves» fabricam
os operámos que batem no ar com os martelos
a ossatura minuciosa do mar




f
uma escrita enérgica começa a fazer mesa
dúplice e firme contudo




g
enquanto em frente às janelas a deflagração
mede o actor
que dividido se inclina com as árvores e respira
com os pulmões em fogo escreve ele
enquanto a casa oscila e
alguém devora o sexo que brilha que
brilha




h
os martelos batem nela a mesa do mar
cresce contra as janelas e o actor deitado sobre
é atravessado por tiros muitos muitas e muitas vezes
o coração deflagra
a mesa sobe até todo o horizonte




i
de todos os lados as coisas olham o actor com
as suas mãos extensas e intensas enquanto
os martelos lhe batem força




j
e ele corre
de uma personagem a outra
____Agata tinha os olhos cor de ágata
____entre dor e o nada prefiro a dor
____Passamos agora à edificação do Estado Socialista
ao longo da fronteira




k
a escrita mastiga tritura as coisas do filme
a orquestra cai contra a casa incendiada e canta
os expropriadores serão expropriados
o céu do vulcão beija a pequena língua




l
a mesa bate-lhe na boca
através de muitos anos o actor vem caindo
sobre o palco como um pequeno fogo inicial
transformando-se




m
as armas soam então e nos espelhos os exércitos
vêm avançando e o império obscurecida
mente estremece
perante o ódio necessário livre




n
o mar brilha no sangue do actor por terra
e as coisas começam a surgir com uma alegria
opaca e inconquistável




o
quem escreve transforma-se a _____morte
como um peixe voraz verdadeiro nome voz verdadeira
renasce
pela mão que devora cresce




p
alguém se agira no limite do filme no quarto
alguém acende a luz: a insurreição e a guerra
acometem a metrópole



q
enquanto não____ tu
choras
com força____ do outro lado do mar
longamente
tu voas recuas na casa cais até ao mar
tu avanças sobes na casa tropeças cais até à hora da tua morte




r
de um extremo ao outro
o ocidente deita-se de lado o seu espírito baba-se
o actor voa contra
o filme____ escreve



s
é o actor vêem___ o actor escreve




t
os operários batem o chão da sala e levantam
a mesa o mar: fazem o filme
dispõem as árvores abrem a janela
na escrita invertidos como na fotografia




u
a respiração ofegante do actor dividido
pelo brilho do espelho repete-se
na imagem das ruas o estrado com degraus
mão que porventura uma cortina esconde
o pano corrido o palco já montado
entre duas águas
a página




v
onde ele finge o teu olhar
que mil vezes irradia sem centro do sol desfeito
em mil letras mil ondas mil árvores




w
a página
onde se compõe e decompõe acende
apaga aparece e desaparece veemente apaixonada
mente
morto como o membro de Deus
o auctor que vive




x
trabalham os martelos por dentro da página
que oscila__________ fazem
como uma insurreição surda e longínqua
para lá do mar para cá do mar
a toda a volta e
sobre a mesa a tua cabeça avança tu
por entre os joelhos afastados da mulher




y
o mar sobe até á boca do vulcão o esperma
alastra sobre a mesa a casa deflagra o filme parte-se
os martelos fazem com força o cérebro do auctor
e as coisas do dia põem-se a falar com contentamento grande




z
este é um lugar da história: o alphabeto



Manuel Gusmão
Dois sóis, a rosa - A arquitectura do mundo
Editorial Caminho, 1990

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