Estes corpos que somos são estranhas
invenções delirantes: tu não tens rodas e contudo
rodaste como se uma hélice te elevasse
só de um lado, te aspirasse até um outro estrato
aéreo, ou como se tu própria, folha aérea,
folheasses o ar e o mundo estremecesse
fora dos eixos.
Isso imprime-se nas areias do cérebro.
Depois, viesse um vento
e desfaria as dunas desse mapa:
a impressão ondula, muda de lugar, mas
resiste. É uma fotografia desfocada
uma tatuagem a outra sobreposta
uma cicatriz que esqueceu a ferida.
Interrompe-se aqui e ali
deixa de ser uma linha fina, um risco
no mundo, para ser uma corda que se entrança
e entrança o mundo.
Há qualquer coisa de movente fixo:
por mais que o tentes, o programa não deixa
que se apague toda e para sempre.
Desligas a máquina, mas o sulco permanece
no écran. Escreves-lhe em cima:
não desaparece, mas troca automática
mente algumas letras;
Encharcas-te em álcool, tabaco e comprimidos
mas a coisa insiste movida pelo fluxo
e refluxo das imagens, das águas, das areias, das sombras.
Manuel Gusmão
Teatros do Tempo
Editorial Caminho, 2001
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