Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva
Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco
Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.
Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.
Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:
As dunas planetárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata - uma lembrança vã.
Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada
que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fome as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve -
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia dos simulacros
das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá
Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004
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