Há uma imagem que regressa: ele está sentado entre as coisas
do trabalho da noite; ele concentrado, elas
reunidas: um piano dentro do dia; rodeado pela luz.
Do outro lado do dia e do mar da luz, ela chegou e
já ali está; suspende-se no limiar em arco; olhando-o
ela inventa-o e guarda-lhe a sombra, enquanto as mãos
dele escrevem no livro das horas a ela roubadas
o som futuro do cravo bem temperado. O som ressoa e
sonha no monte das aves e dos ventos em ruína; o som
é uma árvore manuscrita; minucioso um vento canta
os incêndios sobre a floresta petrificada ou o sol
sobre o monte em que a deusa dança sem cessar.
Era uma sala na clara e plena claridade do dia; e ele
trabalhava com os dedos acesos num canto que
será dedicado àquela que nesse momento chegava
Está a chegar. sempre. Está ali no limiar, leve
e oblíqua contra a ombreira da porta.
Olha-o e sabe que ele sabe que ela está ali.
Ela é doce sombra que equilibra a claridade
e o mundo. Entre ele e a morte é ela quem está.
Ele e ela são corpos músicos
e segundo o olhar dela é ele quem escreve. Ambos
sabem que estão num filme; que são uma imagem
de cinema. Uma imagem inexplicável guardada no cérebro
de alguém: uma ressonância magnética alucinou-a lá.
Desde há muito que está ali esse pequeno e vago
lume que no silêncio se cala ou chama
tremendo: essa imagem num filme num cinema
um dia brevemente perto de si;
um dia de noite, perto do sangue, perto
do seu incêndio escuro: ali, e depois
fica ao longo de uma vida: uma imagem
murmurante que nunca mais acaba de calar-se:
o cinema dos astros num cinema de bairro
já demolido, ali,
- Não. Não é essa a imagem Nem essa
a música. Não é isso que quero. Trocaste
Misturaste as imagens.
- Que esperas, por que dependes dela
e a manténs acesa, inventada em falso? - Porque
a inventei eu e para não haver morte a inventava.
Mas ouve: Sim, a imagem que regressa é outra:
É uma imagem que a música me deu em troco de nada.
Esta: a mulher tem à esquerda a janela
por onde - se ela olhar - o mundo exterior aparece
aparece escrito pela copa das árvores:
lenha para a fogueira do dia.
O turbilhão de luz vem do mar
e quase dissolve a humana forma da mulher nesse canto
da sala que é uma praia e branda e antiga tijoleira
do sul. Aí, perto dessa janela ofuscante
junto à fonte do dia lá fora;
aí onde ela está sentada - silhueta em contraluz,
figura de sombra recortada;
aí onde ela está e o cravo diz as suas mãos: Aí
está o centro da música.
Já tudo era assim antes de teres vindo. E assim
continua depois de ele ter chegado, acrescentando-se
a este frágil mundo que vem vinda à imagem precária
e insistente. Agora,
________________ uma eternidade depois
apoiando-se à ombreira da porta o homem demora-se
no limiar dessa praia onde a música resiste
à luz que jorra pela janela.
A mulher é a fronteira viva do som
são as suas mãos e os movimentos do seu corpo em música
quem responde frase a frase por frase à dissolução nas ondas
cintilantes. Por ela se suspende o afogamento iminente
da casa. A música chama a si toda a luz e sobe; a música
eleva e abre no centro do mar a casa que tinhas perdido.
O homem que vem da sombra interior demora-se
no limiar das águas que abrem o leque de luz e
olha o centro que a música escolheu para irradiar:
a mulher e o seu trabalho solar, as suas mãos escrevendo
na aérea matéria do mundo, a solidão do cravo
a tempestade eléctrica o som do cravo a solo.
Ali, onde há uma vertigem no ar, ali, onde a sombra
dança como se uma chama fosse: Aí nas incessantes
margens do nascimento o homem fecha uma e outra vez
os olhos e então conta a cegueira que o sol impõe
olha a mulher. Vê
a sua livre obediência à música
que nela o
estremece e chama.
- A imagem é a mesma / só
que vista de outro lado.
Não. Não há outro lado.
Quase cego quase surdo, lembra-te -
como se pudesses esquecer -
Manuel Gusmão
Migrações do Fogo
Editorial Caminho, 2004
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