Canto vigésimo primeiro

As folhas do damasqueiro tinham começado a cair
em Julho e depois de Agosto a Setembro.
Nós divertíamo-nos a recolhê-las uma de cada vez
e a contá-las em voz alta.
Um dizia: mil, mil e uma, mil e duas, mil e três,
o outro continuava: mil e quatro, mil e cinco, mil e seis.
A cantilena durava até à noite
e assim enchíamos três sacos.

Mas uma manhã meu irmão deixou de trabalhar
por razões que não quis adiantar,
soube depois que se irritou
porque brincado lhe chamei cretino
por uma folha mal contada.
Eu dissera: dois mil e dois e ele dois mil e quatro;
e o dois mil e três para onde foi?
Ficámos dez dias sem falar. Levantávamo-nos
de costas voltadas um para o outro e comíamos cabisbaixos;
entretanto as primeiras neblinas
iam tecendo um véu de água fina sobre o dorso do capote.
À noite lançávamos aquelas folhas, um punhado cada um,
sobre o fogo e ficávamos a contemplar as labaredas.


Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004
Tradução de Mário Rui de Oliveira

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