XXX

Tudo é matéria do pensar, os gritos, o tráfego,
a súbita música que destrói o sentido

e a navegação das palavras sob a luz,
a cidade acolhendo os seus dias, as suas árvores,

os seus exílios, as suas lâminas rombas
desenhando violências sob a espuma do corpo abandonado.

Hoje, fechada a porta, alguém forçou a porta:
o inverno declinava divertimentos, tomava

de assalto as casas com o frio espesso da memória.
Dentro desta casa, o vento levantava as folhas

nocturnas do pensar e do acontecer, outra vez.
Os amigos retiravam-se, numa anotação

de staccato e sorriam. Era tarde para descrever
o real, a dura categoria que nos iria levar

em direcção ao fim estendendo-se
como branco pano sobre o rosto.

A indecisa forma fará o resto,
a segura forma fará o resto.

Escreveremos com a mala e os papéis, e ninguém
virá perturbar o sangue que corre, corre

tão espesso e tão claramente
com sua orgânica, viva cor.


Luís Quintais
Riscava a palavra dor no quadro negro
Livros Cotovia, 2010

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