Marcas

A pele que o tempo trouxe nas entranhas
desembaraça-se
da treva agora com mais custo, comparável
apenas à de quem,
tentando a todo o transe erguer o écran

de pedra onde o cinema se desfaz, ousasse
fazer da pele a partitura
que os ossos interpretam
no meio de metáforas atadas
por dentro ao próprio corpo que nomeiam.

A pele era uma chave, outras o mundo
decerto encontraria, mas agora
das portas que, depois
de arrancadas às casas e atiradas
ao mar, foram fechadas para sempre

nem uma só subsiste atrás da qual
possamos esconder as cicatrizes.
O mar rebenta-me
de novo na memória, onde os meus ossos
parecem ancorados.

Sustento, erguendo as mãos, todos os astros.
Do sangue a que a distância se mistura
nas casas através de cujas frinchas
a custo conseguimos
fazer entrar o céu, pondo o silêncio à mostra,

há marcas no destino a que se prendem,
urdidos nas entranhas, os tecidos
que vêm coroar-nos
e sobre o corpo se assemelham ao que dentro
de cada coisa é essa coisa abstractamente.




Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

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