As trevas

Começam-nos as trevas a romper
a carne, comparáveis
a neve que do céu
caísse ensanguentada

ou pedra que, ao tombar
num lago, o abrisse
em sucessivos círculos, alguns
dos quais já fora de água, em plena vida,

alguém
no meio da paisagem
empunha um calorífico

enquanto eu, que de roupa
não trago mais que um lenço,
com ele cubro a cabeça para não morrer,

aqui ninguém ignora
que os lagos gelam a partir das margens
e o homem a partir do coração,

que a luz
ascende do vazio
e tudo o que nos resta mais não é
que um sol sem crédito
num céu desafectado,

envolvem-nos as trevas
os ossos, dir-se-ia
que a própria morte
nos serve aqui de pele, como a um morcego.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

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