A Cuesta de las Comadres

   "Ao Remigio Torrico matei-o eu.
   Nessa altura já havia pouca gente nos ranchos. primeiro tinham abalado um após outro; mas os últimos quase foram em manada. Ganharam e abalaram, aproveitando a chegada das geadas. Em anos passados chegaram as geadas e acabaram com as sementeiras numa só noite. E este ano também. Por isso abalaram. Certamente acharam que no ano seguinte seria a mesma coisa e parece que já não se sentiram com vontade de continuar a suportar as calamidades do tempo todos os anos e a calamidade dos Torricos a toda a hora.
   Assim, quando eu matei o Remigio Torrico, já estavam bem vazias de gente a Cuesta de las Comadres, e as lombas dos arredores.
   Isto sucedeu para aí em Outubro. Lembro-me que havia uma lua muito grande e muito cheia de luz, porque eu sentei-me na soleira da porta da minha casa a remendar um saco todo esburacado, aproveitando a boa luz da lua, quando chegou o Torrico.
   Devia ter estado bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava de lua.
   - Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado. - Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, por eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhes coser os buracos, e a agulha albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
   - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe a que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
   - Seca-se-me a boca por te estar falando do que me fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
   Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.
   Soube que me culpava de ter matado o irmão. Mas não tinha sido eu. Lembrava-me de quem tinha sido, e ter-lho ia fito, embora parecesse que ele não me daria oportunidade para lhe falar como estavam as coisas.
   - Odilón e eu chegámos a brigar muitas vezes - continuou a dizer-me. - Era algo duro de entendimento e gostava de afrontar toda a gente, mas não passava dali. Com umas tantas porradas acalmava-se. E é isso que quero saber: se te disse alguma coisa ou se te quis tirar alguma coisa ou o que é que se passou. Pode ser que te tivesse querido bater e tu adiantaste-te. Algo assim deve ter sucedido.
   Eu abanei a cabeça para lhe dizer que não, que eu não tinha nada a ver...
   - Ouve - atalhou-me o Torrico - o Odilón levava nesse dia catorze pesos no bolso da camisa. Quando o levantei, revistei-o e não encontrei esses catorze pesos. Depois soube que ontem tinhas comprado uma manta.
   E isso estava certo. Eu tinha comprado uma manta. Vi que os frios vinham com muita pressa e o gabão que eu tinha estava já todo desfiadinho, por isso fui a Zapotlán a conseguir uma manta. Mas para isso tinha vendido o par de chibos que tinha, e não foi com os catorze pesos de Odilón que a comprei. Ele podia ver que, se o saco se tinha enchido de buracos, isso se devia a que tive de levar o chibozinho ali metido, porque ainda não podia andar como eu queria.
   - Fica a saber de uma vez por todas que penso cobrar o que me fizeram a Odilón, seja quer for que o matou. E eu sei quem foi - ouvi que me dizia quase em cima da minha cabeça.
   - De maneira que fui eu? - perguntei-lhe.
   - E que mais teria sido? O Odilón e eu éra-mos sem-vergonhas e tudo o que quiseres, e não digo que não chegámos a matar ninguém; mas nunca o fizemos por tão pouco. É isso que te digo.
   A lua grande de Outubro batia em cheio sobre o curral e mandava até à parede da minha casa a sombra longa de Remigio. Vi que se movia em direcção a um medronheiro e que agarrava o machado que eu tinha pendurado ali. Depois vi que regressava com o machado na mão.
   Mas quando ele se tirou da frente, a luz da lua fez brilhar a agulha de albardar que eu tinha enfiado no saco. E não sei porquê, mas de repente comecei a ter uma grande fé naquela agulha. Por isso, ao passar Remigio Torrico a meu lado, desenfiei a agulha, e sem esperar mais nada espetei-a nele, pertinho do umbigo. Enfiei-lha até onde coube. E aí a deixei.
   Logo depois encolheu-se todo como quando nos dá uma cólica e logo após ficou inteiriçado até se dobrar de joelhos e ficar sentado no chão, todo entumescido e com o susto a assomar-se-lhe pelo olho.
   Por instantes parecia que se ia a endireitar para me dar uma machadada com o machete; mas de certeza que se arrependeu ou já nem sabia o que faziam, largou o machado e voltou a encolher-se. Não fez mais que isso.
   Então vi que se lhe ia entristecendo o olhar como se começasse a sentir-se doente. Há muito que não me tocava ver um olhar assim tão triste e deu-me lástima. Por isso aproveitei para lhe tirar a agulha de albarda do umbigo e enfiar-lha um bocadinho mais para cima, ali onde pensei que teria o coração. E sim, ali o tinha, porque apenas deu dois ou três respingos como um frango decapitado e depois ficou muito quieto.
   Já devia estar morto quando lhe disse:
   - Olha, Remigio, vais-em desculpar, mas eu não matei o Odilón. Foram os Alcaraces. Eu andava por lá quando ele morreu, mas lembro-me bem que não fui eu que o matei. Foram eles, toda a família inteira dos Alcaraces. Caíram-lhe em cima, e quando me dei conta, o Odilón estava agonizado. E sabes porquê? Para começar, o Odilón não devia ter ido a Zapotlán. Tu sabes isso. Mais tarde ou mais cedo tinha que lhe acontecer alguma coisa nessa aldeia, onde havia tantos que se lembravam dele. E nem sequer os Alcaraces gostavam dele. Nem tu nem eu podemos saber o que foi ele lá fazer a meter-se com eles.
   «Foi uma coisa assim de repente. Eu acabava de comprar a minha manta e já estava de saída quando o teu irmão escarrou um golo de mescal na cara dos Alcaraces. Ele fê-lo a brincar. Via-se que o tinha feito para se divertir, porque fê-los rir a todos. Mas estavam todo bêbados. Odilón e os Alcaraces e todos. E de repente caíram-lhe em cima. Sacaram das facas e saltaram-lhe em cima e bateram-lhe até não deixarem de Odílon nada que servisse. Disso morreu.
   «Como vês, não fui ei quem o matou. Gostava que te desses conta que eu não me intrometi em nada.»
   Isso disse ao defunto Remigio.
   Já a lua se tinha metido do outro lado das azinheiras quando eu regressei à Cuesta de las Comadres com o camaroeiro vazio. Antes de voltar a guardá-lo, dei-lhe uns quantos mergulhos no arroio para lhe enxaguar o sangue. Eu ia precisar dele dentro de pouco tempo e não ia gostar de ver o sangue do Remigio a todo a hora.
   Lembro-me que isso aconteceu para aí em Outubro, na época das festas de Zapotlán. E digo que me lembro que foi for esses dias, porque em Zapotlán estavam queimando foguetes enquanto que do outro lado para onde atirei o Remigio se levantava um grande bando de urubus a cada estampido que davam os foguetes.
Disso me lembro."

 

Juan Rulfo
A planície em chamas
Cavalo de Ferro, 2003
Tradução de Ana Santos

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