A derradeira viagem
até à tua terra natal
começou alguns dias antes:
preparativos, lembranças,
indicações.
Ao telefone com assombro
ias ditando
não os escolhos da paisagem,
nem as encruzilhadas
a que tinha chegado
a vida,
mas o sabor dos frutos maduros,
a luz dos encontros à beira do tanque.
Aguardavas na varanda o nítido
momento de partir,
solene como uma rapariga
vestida
para o seu primeiro baile:
o casaco de malha
segurava já os ombros,
apenas o lenço
que corria em tons de mar
pela pele alva do pescoço
criava uma ilusão de céu
na velhice cansada das
manhãs
em que te levantavas
para os gatos
e para a solidão
amiga das
canadianas,
metade corda de alpinista,
metade remo de batel.
Nos dias antes de morrer,
sentada no paredão da cama,
voltaste a escutar a harpa da infância.
Ninguém sabe para quem foi
o teu último pensamento,
as palavras finais que disseste,
em que parte do mundo
pousaste o olhar pela última vez.
Nas Pietàs que escrevo
é sempre o filho que ao colo tem
sua mãe morta.
Jorge Gomes Miranda
Requiem
Assírio & Alvim, 2005
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