O teu choro a quem não o quer
Paul Eluard
I
Não posso dormir, porque o circo veio parar
__em frente à minha janela e muita gente acorre em alvoroço!
________________________________Como através da erva
do Inferno, vejo os seus rostos, que trazem a esta cidade a destruição
_e as poesias inesgotáveis, de que ouvi
falar, a dormir, entre Nancy e Versalhes,
_das celas da prisão sob as estrelas do rio,
que envia ao céu a sua amargura,
_nas margens e nas florestas, que fedem aos cadáveres dos alemães.
Eu dormia quando era pastor e lia a minha Bíblia
_e não pensava no metropolitano que despedaçava o meu sono,
como se eu fosse culpado, como se tivesse aniquilado raparigas
_e induzido rapazes a um sono de dez horas,
como se eu fosse um dos mendigos que não mostram o rosto
_quando o sol vai passear por cima da catedral,
como se eu fosse o homem dos olhos que vos apunhalam, porque
_ não quero morrer à fome, «à la fin tu es la de ce monde ancien...»
Oh, eu conheço o meu Pascal e os meus poetas dos pavilhões,
_os gemidos que saem dos hospitais sobre o Sena
e que a fétida manhã faz entrar pela tua janela, atingindo em cheio
_o teu coração, que tens de trazer contigo, mesmo que o quisesses devorar,
esse coração, num sítio verde e soalheiro, esse coração
_que uma vez se arrastou no doce feno e sonhou com baldes de leite a
_________________________________________________sussurar,
esse coração que sufocava nas estradas, que esteve nas fábricas
_e teve de respirar o suor da gente néscia que trabalhava nas queijarias,
esse coração que viu nascer o dia antes de o Sol chegar,
_que dormitava com ladrões em frios catres
no fim dos comboios,
_nas margens das bebedeiras,
_nas margens da erva,
_nas margens da glória,
_nas margens da ciência,
esse coração que quer sair do cárcere, para ser livre como as aves
e como as nuvens de Março pairar sobre a Torre Eiffel, com a qual
_________________________________________estou sozinho,
_para ter as maiores conversas do ano,
deste ano de luto e tristeza.
II
Não posso dormir, porque três milhões fazem muito barulho!
_Três milhões que sonham com os progressos da técnica,
que rezam a sua luta sob os solavancos das locomotivas,
_ que dos sarcófagos de vidro fumegam para a manhã,
não posso dormir, porque sei que eles desprezam o meu rosto,
_este rosto que foi uma vez carne e sangue
e que esta noite se contrai, para se tornar na visagem horrenda do
________________________________________________Diabo,
_no abismo, no aniquilamento,
um rosto que não é digno de nenhuma paz,
_este meu rosto, que viu mais que todos os rostos desta cidade juntos,
desta cidade que chora nas árvores e sob o vestido de seda
_da «chansonette» na praça da Concórdia...
III
Se eu pudesse dizer quantas vezes quis morrer esta noite,
morrer sem salmo e sem mãe nem pai, morrer como os animais
que sufocam, encurralados entre muros,
_morrer como um verme pisado, sem qualquer assistência,
morrer como o melro esmagado pela roda do comboio aéreo,
_morrer como as almas das árvores, que mandam com o vento
os seus segredos para os oceanos, quando a Primavera chega, porque
_«à la fin tu es las de ce monde ancien...»,
tanto sofrimento, tanto cheiro de corpos humanos nunca eu antes
________________________________________tinha respirado.
IV
Já não suporto ser mais humilde que o vendedor de espargos,
ser mais humilde que a vidente e mais humilde
que o padre que bate com o pé na pia de água benta de Notre Dame...
_Já não suporto ser mais pobre que o mendigo,
que arrecadou os meus últimos dez francos,
_sem me dizer sequer «bonjour»,
mais pobre que as prostitutas e as crianças que, debaixo dos castanheiros,
_vão lambendo gelados com as línguas do Demónio,
que se parecem com as línguas deste mundo quente, cintilante, aleatório.
_São pessoas que não têm nome, não se chamam Primavera, nem Verão,
nem Inverno, têm o belo nome colectivo de PARIS
_e podem ver-se à noite, de bocas abertas
e rostos cavados, silentes e estertorando de sofrimento terreno,
_ que a ciência lhes ensinou,
para que possam acusar Deus!
_ Vês estas pessoas remarem para casa com sapatos de salto alto e
__________________________________________aspirarem o ar
do fraterno oceano, fazerem as agulhas
_e arrancarem aos apitos o seu som trinados,
estenderem as pernas em cadeiras de veludo algo desengonçadas,
________________________________esconderem as úlceras
_e lerem às meninas uma palavra bem conhecida da Bíblia,
sentadas na borda da cama, quando a última claridade do dia já está
_____________________________________________farta do sol.
V
E onde está o teu amigo que te devia explicar estas poesias,
que espeta a carne assada para a pôr no teu prato, enquanto recitas um
_______________________________________poema de Baudelaire?
__Onde está o teu amigo que te acompanha até à beira-rio, vestindo
_________________________________________uma camisa lavada,
com punhos perfumados, movendo-se como os jovens senhores dos
_____________________________________________castelos de Loire,
_de cujas bocas só saem palavras como «Valery, Eluard, Coty,
Ile de France» ou Notre natures est dans le mouvement...»?
Onde está o teu amigo que dez vezes por dia te diz quão rico tu és
e que desfia os teus pensamentos à beira do lago
em que os Franceses contradizem a sua história gloriosa,
_onde se comportam como se a revolução só ontem tivesse terminado.
Onde está o teu amigo que exalta a tua pobreza,
_que foi criada
numa aldeia da desesperada e fragmentada Áustria
por uma mãe que só frequentou três classes da escola primária
_e por um pai que a tempestade do norte impeliu como um animal
____________________________________através das entranhas
_do frio escandinavo
quando fugia ao malogro da sua própria alma?
VI
Paris: um mar que te aniquila, uma aura
_de telhados, capelas mortuárias, de fábricas e saias de seda,
uma aura de árvores irisantes e danças delicadas, em rodopio,
_o cheiro dos albergues de urina abertos, onde os homens abandonados
_____________________________escrevem, com a sua água dourada,
destinos que, há muito esquecidos, já não consolam nenhum coração,
________________________________________em cristalinas
paredes de pez, prisioneiros do pó e da fome da manhã,
que se levanta com o dia, com o dia que debaixo da ponte
_acorda e esfrega os olhos.
Este é o vício do meu cérebro, destruído por milhões de vocábulos
_e por milhões e milhões de palavras de consolo, que vão desdes os
_____________________________________________Gregos
até ás luzes verdes e vermelhas do cruzamento,
_este é o ponto em que a terra foi mais fria para mim...
Não posso dormir, nunca poderei dormir
porque vejo sempre este rio e sempre
me impele o asco destes bordéis, esta beleza que vai morrendo
_entre os troncos da Avenida de Ternes...
Não posso dormir, porque o circo veio parar
_em frente da minha janela e muita gente acorre em alvoroço! Quero
_____________________________________________esquecer
toda essa gente, porque a minha fome é grande... e me faz regressar a
______________________________________________um país
_que ainda ninguém viu, um país de verdes e soluçantes madrugadas,
um país que tem o meu nome,
uma manhã sem destruição....
Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano
Sem comentários:
Enviar um comentário