passagem pelo cárcere

(Nota: Torga foi preso pela PIDE em Novembro de 1939 em Leiria e levado mais tarde para o Aljube de Lisboa)



(…)

- És então escritor?
- Sou.
- E poeta também, pelos vistos…
- Também.
- Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta…Vais longe!
- Hei-de ir até onde puder.
Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.
- Muito me contas! E queres então fazer a revolução social?
- Quero que me deixe em paz.
- Deixo. Mas antes vais responder a umas perguntinhas…
- Não tenho nada a acrescentar às declarações que já fiz.
- Tens. Ora pensa lá bem …
- Está pensado.
- A sério?
- A sério.
- Ouve: eu podia pôr-te aí a falar como um papagaio. Era só dar-te corda. Mas não vale a pena. Temos muito tempo. Fica para mais tarde…Verás que daqui a alguns diass mudas de ideias…
- Não mudo.
- Mudas, mudas…
Sem táctica elaborada para enfrentar a nova situação e ferido nas mais íntimas veras do amor próprio, reagia em bloco, maciçamente, com a dureza das minhas fragas.
- Tu parece que tens fumaças de valentão! Sossega, que eu tiro-as…
- Não tira.
Ainda fez um gesto. Mas deteve-se, sorriu escarninhamente, e chamou por um subalterno.
- Este segue também…


miguel torga
O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974

Sem comentários: