muravera/ villaputzu

O cão negro saltou o muro que separava a estrela dos campos.
Perseguiu, furioso, arreganhando a dentuça. Aproximou-se cada vez mais. Rosnou, ladrou.
O sol estava a pique, queimava. A minha sombra desaparecera por completo.
Espiei, por cima do ombro, o cão que, embora furioso, mantinha uma certa distância. Pensei: «O estupor negro talvez tenha receio de morder um homem sem sombra…»
Mas se ele soubesse como me sentia abandonado. Sem sombra, o saco ao ombro, a caminhar debaixo daquele sol impiedoso, numa estrada deserta… se ele soubesse que poderia ter-me devorado e que ninguém daria por isso – talvez não tivesse desistido de me ameaçar.
Continuei a andar, com passo firme – mas cheio de terror. E pensei que era muito novo para ser devorado. Não tinha ainda uma biografia de que me orgulhasse. Qualquer coisa que me tivesse acontecido e não me envergonhasse de contar, ou escrever.
Ouvi o cão a ladrar, agora, atrás do muro donde saltara. O suor escorria-me pela espinha abaixo. Os pés queimavam-me no asfalto sobreaquecido. Em redor, pedra e mais pedra. Uma risca de mar, ao fundo. Silêncio abrasador da uma da tarde. E uma vontade terrível de morrer, de desistir.
Eu nunca conseguira medir a minha existência sem pensar no seu fim. Estivesse para breve, ou não, esse fim.
De repente tudo acalmou em mim. Caminhei até à aldeia que surgira na curva da estrada, como uma bênção. Percebi que ainda viveria muito tempo. E, enquanto acelerava o passo, descobri que a calma nem sempre tem força para construir um destino, não põe a vida em movimento.
Nesse instante, desejei que o cão me tivesse devorado.



Al Berto
O Anjo Mudo
Contexto, 1993

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