cartas

A vida foi construída a partir de linhas rectas e curvas, círculos imperfeitos, assustadoras pirâmides, triângulos inacessíveis. Cada um de nós se ergue destes elementos, enquanto Deus espia o nosso espanto; e, com aqueles elementos duma grande simplicidade erguemos, também, o inferno lento dos dias.
Por vezes, descobrimos que os acontecimentos se tornam realmente importantes, quando os vemos de diferentes ângulos – como se estivéssemos sozinhos, abandonados, no meio duma sala de espelhos.
Apaixonamo-nos. Desatamos a escrever cartas insensatas para dizer, um ao outro, que jamais será possível voltar – juntos e em silêncio – ao lugar da noite onde nos destruímos e tentámos refazer a vida.
As cartas servem para isso mesmo. Assinalam os sobejos da paixão, perturbam-nos os sentidos e o coração. São a nossa derradeira existências de papel.
Depois, lentamente, a memória vai buscar violentas imagens que, durante anos, nos esforçámos por esquecer. Lá fora a cidade anoitece envolta numa luminosidade peganhenta. Dizemo-nos:
– Há muito tempo que não choramos.
Mergulhamos o rosto no escuro das mãos, as lágrimas irrompem, suavemente, sem convulsões nem gemidos. São as piores lágrimas, aquelas que se assemelham a ilhas perdidas no meio da nossa própria noite.



Al Berto
O Anjo Mudo
Contexto, 1993

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