poema do rapaz alto

para o antónio gonçalves e para a márcia miranda

havia um rapaz muito alto que tinha medo de ser grande demais para caber num coração. foi assim que se apresentou, vim por tristeza mas, se me quiseres ver outra vez, amar-te-ei para sempre. depois, partiu dobrado sobre si mesmo, como alguém que quisesse abrir a boca nos próprios pés. com medo e calado, abriu a boca sem razão e, de tão dobrado, até o coração lhe fugiu.
havia um rapaz sem coração que tinha medo de não haver nada para lhe tapar aquele vazio. um dia, sem contar, um pássaro ali se pôs e fez ninho. o rapaz, admirado, passou a andar mais hirto, lento, para não o fazer cair. sem contar, ouvindo o canto do belo ser, o rapaz pensou que, se tivesse coração, poderia amá-lo. o pássaro, apaixonado também, imitou o fogo.
havia um rapaz de fogo ao peito com medo de se apagar. havia quem dissesse que era fogo de voar, como um amor se elevava. um dia, tão quente no peito, o rapaz abriu a boca e sentiu o vento descer. tão veloz entrou levou muita coisa de arrasto. de arrasto ali em surpresa, entrou uma boa notícia.
havia um rapaz muito alto que, sem contar, e mesmo sem coração, recebeu uma notícia de que havia alguém para si, o rapaz de vento ao peito, por ser tão alto, ama a sua mulher e ainda se reparte por todos os corações.



valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco, 2006

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