havia uma menina sentada
junto a uma janela
ela vestia uma velha camisa de dormir
larga
e tinha cabelos castanhos lisos
longos
tinha uma caixa de plástico vermelha
no colo
e olhava o horizonte cinzento
ao longe
talvez vivesse numa ilha
e talvez brincasse junto ao mar
nas tardes de verão
ela estava sentada
não sei bem se num banquinho de madeira
ou se num rochedo do tamanho do mundo
às vezes
os seus olhos pousavam suavemente
na caixa vermelha
e os seus pequenos dedos
imprimiam na superfície do plástico
antigas histórias
de gente que não mais voltara do mar
a casa era do tamanho
de uma janela que dá para o mundo
e a madeira cheirava a madeira
e alguma coisa nela me dizia
que outrora fora barcos
nenhum entardecer
se assemelhava ao que habitava
aquela janela
e a menina sabia-o
não sei bem como
os seus olhos cinzentos
olhavam o horizonte
com a paciência
de quem olha os horizontes
e por vezes
esticava o pescoço
para ver mais longe
ela descobrira sozinha
o significado da palavra longe
o tempo era
verdadeiramente
algo indistinto
e os cabelos
acariciados pela tempestade
gritavam
aos olhos mais atentos
a palavra eternidade
sempre que abria as mãos
caíam ao chão
punhados de terra
ainda misturada com raízes
e no seu colo pousava
aquela caixa vermelha de plástico liso
como uma mancha de sangue
no branco sujo
da camisa de dormir
de vez em quando
cantava
melodias tristes
que ela ouvira
certamente
da boca dos mortos
que escolheram aquele lugar
para olhar o horizonte
um dia
alguém vindo do mar
dissera-lhe ao ouvido
a palavra infinito
e ela rira
ria sempre
que alguém dizia
infinito
desde então
passava noites inteiras
na sua janela
nenhuma palavra
se lhe ouvia
mas ria-se às vezes
como se riem as crianças
há quem diga
que lhe morrera o mundo
e que perdera o tempo
numa noite de tempestade
outros dizem que aprendeu a falar com os mortos
e que passeia no fundo dos mares
que chama pelo respectivo nome cada estrela
e que tem uma música para cada pôr-do-sol
que guarda na pequena caixa de plástico
todos os sonhos dos homens
eu sei que ela tem uma janela nos olhos
imagino que corra na praia
e que caminhe sem dificuldades
na estrada do horizonte
julgo que é sozinha desde sempre
e que não gosta de andar com guarda-chuva
provavelmente
conhece mesmo o fundo dos mares
e nem sequer me custa acreditar que
se pudesse ver o que esconde
aquela caixa de plástico
ela me pareceria vazia
José Rui Teixeira
Quando o Verão Acabar
Quasi Edições, 2002
1 comentário:
Parabéns pelo excelente blogue em tom de ode à poesia. Fazem falta.
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