Viver outras vidas

É extraordinário que duas pessoas
como nós, cuja vida decorre entre as divisões
de um paralelepípedo, se divirtam
tanto com esses objectos que acumulam pó,
ocupam espaço e exigem tempo, muito
tempo. Melhor seria andar por aí, sem rumo
e miserabilismo, apenas para que
as horas fossem como o mel ao cair, fio
suave e dourado que nos levaria até
à cama para um sono tranquilo. Mas não.
Deu-nos para, crianças ainda, procurarmos
um canto com sossego e luz e aí dar
início à pior das companhias: viver
outras vidas. Inevitavelmente, chega o
dia em que, por catarse ou desfastio,
se ensaiam papéis, uma ou outra anedota,
um sorriso, que outros, como nós, procurarão.
Parcos comprimidos, os testemunhos e restos
banais dessa meteorologia a que
chamamos dúvidas, angústia, a nossa vida.



Carlos Bessa
Em Partes Iguais
Assírio & Alvim, 2005

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