As hortênsias estendidas num outro tempo decoram a estância
mais acima do meu corpo.

  Senti o grito dos faisões encurralados nos ramos de agosto.

  Um animal invisível rói as madeiras que também estão para lá dos
meus olhos

e assim se aumenta a serenidade e prevalece o cheiro da mostarda
  que foi derramada pela minha mãe.

  Eu convalesço em lençóis limpos que me preservam dos insectos
      e os cristais da minha infância são causa da imposição de uma
      luz que os antecede em muitos dias desde que existiu a soleni-
      dade e a pureza.

  Neste espaço reuni-me com a tua doçura, a que traíste diante dos
     meus olhos.

  Agora és obsequioso e pacífico como o óleo que se reserva para os
     agonizantes;

  agora conténs-me com as tuas mãos e descobres-me todos os ges-
     tos do teu rosto:

  tantas vezes puseste a boca sobre as feridas, tantas te desdisseste
     como uma lebre tenebrosa...

  Assediado por enxofre que não podias suportar nos alimentos,

   tantas me recebeste no teu olhar e me participaste uma escrita de
      carmins abrasados,

  tantas te desplumaste na minha existência...! Foi uma época da-
    nificada.

  Tu invocavas o chamariz e fazias com que as árvores se inclinas-
     sem sobre nós nas tardes imóveis enquanto a polícia escrevia
     os nossos nomes.

  Noutros dias cantavas possuído pelo álcool, que transbordava
    azul sobre as mesas gastas pela lixívia.

  Uma senda de tojo conduzia até à tua casa onde era sempre inver-
    no. Ah como sentia os teus dentes e quanto tempo te escutava,
    como esperava o teu desaparecimento amando-te!



  Não me deixaste outro sinal que o teu rosto celebrado pelo pranto
    das mulheres.

  Perante a tua beleza inclinava-se a serenidade, viúva tua desde há
     muito tempo, viúva expulsa dos teus lençóis.

  Isto foi quando, atraído pelo acónito, penetraste nas suas câmaras;

  isto foi quando começou o esquecimento.

  Tu distribuías a nostalgia de quanto é honrável e concertado com
    a pulsação dos ovos.

  Não quiseste ser louvado por isso mas sim pelo rancor, tua cida-
    dania naquele tempo.

  A cinza das tuas unhas refugiava-se nas escrituras e naqueles tem-
    plos cujas madeiras estão marcadas a golpe de faca e com a
    gordura dos animais torturados.

  Tu, mais autêntico que eu porque me excedias em vigilância,

  conduzias-me aos lugares onde é possível saborear o verdete e o aço.



  Durante um instante visitou-me um crepúsculo cuja profundidade
    não me pertence.

  Regressei. Regressei até onde os pais são cuidadosos e perseguidos
    nos seus ossos,

  mas não é este o armistício que eu comprei sobrevivendo-te.

  Repito que agora és obsequioso e que me acompanhas ao espaço
    onde as hortênsias são persistentes.

  Mais adiante, nos desvãos, sinto um bramido de pombas: é um
    país nupcial. Conheces tu a virtude das pombas pelos seus ex-
    crementos?

  Naquele e neste tempo te recebo e só assim, olhando-me no teu
    rosto, aquele que se manifesta através de uma membrana in-
    corruptível,

  não no furor que predicavam os teus dentes, embora me amasses
    dentro de minha mãe.

  Naquele e neste tempo te recebo e o meu desejo é alimentar-me
    com a tua metálica bondade mas também dos aromas que te so-
    brevivem.



  Senta-te no meio das ruínas, senta-te com doçura no meio ou à
    beira das ruínas.

  São nossas única propriedade e eu começo a distinguir algumas semen-
    tes e láudano e certos coágulos obedientes ao exercício da luz.


  Desta paixão, dos provérbios posteriores à tua vertigem, do ani-
    mal que chora e a sua piedade está sobre nós,

  tu deduzirias lacre e colocá-lo-ias nos meus olhos, ou quiçá lima-
    duras de níquel e outras matérias intoleráveis.

  No entanto tu amavas a sumptuosidade das bandeiras no azul, por
    cima das tabernas.

  Sabes o que é o esquecimento? que encontraste tu na reserva do
    esquecimento?

  Todos os ensinamentos se extinguiram como um carbureto no
    fundo das galerias inacabadas;

  todos os ensinamentos menos a palpitação do bosque e alguns ves-
tígios teus nas minhas mãos.

  O rio desce ainda e eu não sinto nada agora a não ser o cheiro da
  água.

  Os teus filhos e as minhas filhas submergem-se no rio e os que nao
    esqueceram não se aproximam nunca porque seriam recebidos
    e talvez entrassem nos seus corpos e morreriam.

  Pensaste na paciência, pensaste na paciência semelhante a ónix, na
    paciência escavando tumbas no som, abandonando teias aos ven-
    tos que um dia chegarão, que chegarão depois das expulsões?


  A cidade não está limpa; nos baldios há irritação e o cornelho e o
    centeio coabitam e cresce um alimento que será comida dos
    nossos filhos.




  Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome tu não me dirás.

  Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome não tocará os
    teus lábios.

  Cruzei a minha infância e países de morfina e largos bosques nos
    quais descansei e grandes asas passaram sobre os meus olhos.

  Nos lugares a que eu acudo ao entardecer há frutos muito espessos
    dos quais faço colheita e os meus dedos são abrasados pelos
    pirilampos porém eu faço colheita e demoro-me a acudir a ou-
    tros lugares, às alcovas onde minha mãe envelhece para lá da
    minha velhice.

   E as palavras, febre debaixo das tégulas, grumos retrocedendo, fel
     que enlouquecia debaixo do disfarce do sonho,

  o que são, o que fazem em mim quando se extingui já a verdade?

  Da verdade nada ficou mais que uma fetidez de notários,

  uma lêndea lasciva, lágrimas, urinóis

  e a liturgia da traição.



  As hortênsias entendidas noutro tempo decoram a estância mais
    acima do meu corpo.

  Que lugar é este, que lugar é este? como estás ainda no meu co-
ração?


Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato

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