(Considerações de Ovídio acerca do seu desterro)
Há quem julgue que nos meus versos me refiro aos deuses
e aos homens. Eu próprio contribuí para isso. Mas posso dizer-vos
que sigo outros caminhos. Falo dos seres. Sempre o fiz. As nuvens
chegam de longe e ficam reflectidas na superfície límpida
do mar. Se me perguntas o que é um ser, direi apenas
que tudo o que for trazido pelas ondas delas recebe
uma outra realidade, esse estremecimento que parece ter
origem num ventre materno fecundado pela areia
ou pela luz. Há quem olhe e não o reconheça; por isso tenho
de o escrever. Sento-me à frente de uma mesa circular,
de madeira. Reparo melhor nela. Vejo como são as estrias, algumas
das manchas, os nós, os seus leves desenhos. Toco neles e depois
encontro o relevo do que ficou escrito. Se te aproximares um pouco
ouves a minha voz cansada. A tudo queríamos dar um nome,
e quantas vezes se não pode reconhecer sequer onde se encontram
vestígios tão difíceis. Refiro-me talvez ao calor dos teus olhos e
[espero
pelas imagens que hão-de finalmente caber neles. Nada
é mais sereno. Vês? Os círculos na água afastam-se.
Fernando Guimarães
Lições de Trevas
Quasi Edições, 2002
1 comentário:
Quando descreve sua mesa, Ovídio é atemporal, como se estivesse aqui a nosso lado. Quando revela seu comportamento e suas ações, é como se um amigo nos estivesse falando de si próprio. Somos tão arrogantes que achamos, só porque vivemos hoje, que este momento é o máximo a que a humanidade chegou. Talvez por nos desligarmos de nossa história e de todos os que já viveram e dos que nos seguirão criamos uma angústia de resolver problemas que só têm a urgência de serem resolvidos enquanto vivemos. Havia escravos no tempo de Ovídio, talvez ele aceitasse a situação, hoje já não há mais, pelo menos de direito. Mergulhemos na humanidade, gozemos seu convívio, assumamos a imperfeição eterna do homem, sejamos felizes contemplando a mesa de Ovídio.
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