O mar bate como se o sopro
do separar as águas de novo
rasgasse a terra alcantilada.
Não o vejo, mas ao longe
oiço, no êxtase, o rumor
das ondas infinitamente. Nós
calamo-nos, ouvindo a voz
interior apenas, e pensamos
nos livros que consubstanciam
a separação entre terra e água.
Levem-me ao paraíso dos abutres,
das pedras quentes e secas onde o corpo
mirra e mais se adentra na leveza.
Levem-me, morta, à planície azul
dos magros vultos crepusculares das hienas.
Sem os ecos dos uivos que me
derrubarão como as trombetas velhas.
Não deixem que os mil vermes
me rojem na alheia poeira.
Venham os bicos de aves e as fauces
a procurar-me a alma. Em círculos
circundem-me mais estreitos,
até que eu seja estaca e osso
no centro do seu espaço. Não quero
jazer eternamente morta e ignota
na oca solidão da carne. Venham
as aves irmãs, os cães selvagens
que eu invoco, voláteis, nos poemas.
Temo correr para mais longe do que a fábula
que é a carreira longínqua vida adentro.
Ignoro como moveria o corpo para além,
quando o pensamento vê praias e arvoredos.
Não sei deslocar-me inteira para a cena
onde enfim poderia ter visão inteira.
Se eu pudesse alcançar tudo sem o percurso
que dizem ser uma dádiva da morte.
Recordo em tom maior a avó canora
no seu boudoir ao espelho brancamente.
Brancamente cabelos enrolavam-se
no espaço em derredor tão vago.
Recordo o balançar da forma oval
do espelho e da imagem reflectida:
das brancas mãos caída imagem
da boca e de poemas recitados.
Fiama Hasse Pais Brandão
Cenas vivas
Relógio D'Água, 2000
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