I - Mostram cicatrizes como amores

1

Mostram cicatrizes como amores

os dedos no peito comido
um sulco a suar no dorso

soalho de carne, os tendões abertos
a coxa estralhaçada, o músculo

atravessado de sangue
a cicatriz na funda da face
semeados onde a carne os enche,

a memória vem benzê-los
eles ternos, afiam desgraças.

2

Sangramos como animais expostos
aqui ou lá o mesmo corpo

pendurados em molhos, olhos esfolados

as cabeças rapadas em capuz, o peito negro
os dedos cancerosos, arrotamos milho podre

comemos da memória a placenta,

queremos a cona da mãe.

3

Descemos ao inferno com mãos de linho
os olhos debulhados nas fendas

os céus das bocas a queimarem chamas,
as grades encostadas às portas

o sangue grave água de deus.

4

As valas são canteiros de irmãos,
os corpos a ranger no mesmo canto

as lajes bordadas como pedras
os corações em bolbo a desfilarem
roda, as mãos depositadas
no torno da pele

doridos, os corpos brancos

exumam-se à noite beijados nos sinos
e depois dobram às casas,

o coalho em escuma
a branquear dos mortos.

5

Nas cinzas sangram piras rudes,


homens desluzidos no meio dos ganchos

ensombram o cresto das paredes,

abrem o caminho ao gado.


6

Põem a forca ao pescoço como fímbrias

bocas de arame farpado, os nós em fúria
caiados de sangue, frestas, abandonados

são cheios de sal ao sol

são honrados, descobertos
amarrados do artelho ao cós

o surto já lhes vem no convulso,
marcados onde a luz os faz.

7

Depois da água rebentamos sede

os ossos lavados como sombras
as mãos em mapa, os olhos submersos
a água vem luzir-nos
seguimos valados nos cortejos
o gado carnudo a excitar-nos,

nus os homens nos pénis desfiados
as mulheres enchidas de caranguejos

os braços a marcarem águas
descidas da altura dos mortos.

8

Cativos fazemos o calvário às horas

dividimos dores à sobra da fatia
o pão das vésperas como crânios

que levamos à boca, somos feitos
dos que morrem, abrimos aos mortos
o estômago na víscera, cerramos
o coração aos dentes, o dia findo

ao sol fresco no cheiro das fezes
as facas repetidas nas gargantas.



Alexandre Nave
Columbários & Sangradouros
Quasi Edições, 2003

Sem comentários: