A minha amizade está sobre ti como uma mãe sobre o seu pequeno
__que sonha com facas.

Não te porei outra venda senão a que está desfiada à volta do meu
__corpo, não te porei outro óleo senão o que descansa dentro dos
__meus olhos.

Certamente é uma história horrível o silêncio mas há uma saúde
__que sucede ao desespero.

Recorda-te da paz nos comércios abandonados, recorda-te da do-
__çura nos quartos onde se corrompia o esquecimento. Ninguém
__tinha razão nem esperança, que podíamos fazer?

Agora passam andorinhões pelo nogueiral e o seu som treme sobre
__mim.

Tu, longe, dormes entre alarido, filho meu, tu que costumavas en-
__louquecer os professores e as mulheres que se deslizavam para
__debaixo dos teus dedos.

Podes vir repartir os alimentos e as mentiras diante do meu rosto.
__Por que queimas a tua língua nos vazios escavados na pedra-
__pomes, por que te abres às sementes implacáveis, às linhaças
__adventícias?

Podes cantar nas minhas mãos mas desdizes-te em cima da tua
__beleza.

Farias muito melhor aproximando-te.




O incrédulo habita um mundo de preces. Há resplendor diante dos
__seus olhos, os que estiveram feridos pela indignação.

É mais simples proceder de um país sumptuoso, de uma memória
__coberta de espelhos - cada espelho com sua vertigem, cada
__espelho com sua profundidade cheia de frutos - porém, de
__qualquer forma, desconfia daquelas mãos cuja brancura pode
__ser beijada.

É mais simples despertar de um tempo cuja beleza não existiu ain-
__da que se estendesse como um crepúsculo.

Aproxima-te de quem se aquece com os excrementos da justiça. A
__nossa honra consiste em não ter razão,

a minha paz em envergonhar-me da esperança.



Cada dia tem o seu metal, cada delinquência a sua misericórdia;
__o arco suicida é conduzido pelo movimento da terra. Não
__me é possível decidir sobre a duração da tempestade, nem tão-
__pouco o desejo para lá dos meus olhos.


Todas estas palavras devem entrar no teu coração e, peço-te:

não ponhas lombrigas dentro da minha alma.




A minha memória é maldita e amarela como um rio sumido desde
__há muitos anos.


A minha memória é maldita. Mais adiante, antes da memória, um
__país sem retorno, acaso sem existência:

erva muito alta e doce, sesta na densidade: aquele mel sobre as
__pálpebras.


Era a exsudação e penetrava no tempo. Os insectos fecundavam-
__se sem cessar e a serenidade possuía-nos. Porém, aquele tempo
__não existiu: sucedeu na imobilidade como a música antes da
sua divisão.


A minha memória é maldita e amarela como o resíduo indestrutí-
__vel do fel.

Eu estendia membranas sobre os gritos da inutilidade. Esta foi a
__minha justiça, porém o que resta da minha alma?

Não me procures na justiça. Não encontrarás o meu corpo em
__igrejas nem em profecias insuportáveis como os moscardos na
__língua dos animais muito doentes.

A minha amizade está sobre ti e tu não estás debaixo da minha
__amizade. Não sou eu o despojado: a tua beleza é tenaz mas o
__meu cansaço é mais profundo que a tua beleza.





Nos estábulos onde me envolve a escuridão eu recebo a morte e
__conversamos até me lamber docemente os lábios.

Não é a tua virtude mas a minha; não é a tua acidez aquela que de-
__tém os perseguidores; não são os teus gritos na extremidade,

mas o meu coração e a sua vergonha, o meu coração

e o sorriso dos torturados.



Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato

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