Era apenas um livro. Teria forçosamente que ser um livro: a aparência era de livro, o comportamento era sem dúvida de livro. Todos sabiam, porque sempre fora assim, que mais um livro não traria nada de extraordinário: letras, vírgulas, alguma gramática. É isto um livro. Porém, quando abriram aquele livro, e era de facto um livro, notaram uma qualquer presença estranha, algo que não souberam definir. Fechavam-no, abriam-no. Olhavam atentamente a capa, interrogavam. Lançavam-no ao ar numa última tentativa de desmanchar o truque: mas ele caía como um livro, desprezando as suas páginas como todos os livros.
Sussurravam de uns para os outros: o que se passa com este livro? Trocavam olhares cúmplices quando entreviam num rosto alheio o efeito da mais breve leitura que fosse daquele livro. Os sintomas eram claros para quem já lera uma parte. Um tremor subtil na pele, um desajeitado modo de ter mãos, ora no bolso, ora na cara, ora rodando no ar, um passo levemente incerto, uma tensão nas sobrancelhas. Para quem não lera, porém, tudo corria calendariamente.
Os leitores daquele livro inquietante aproximavam-se, trocavam hipóteses de solução, procuravam desesperadamente calar o desconforto que a leitura lhes ia gradualmente instalando. As suas vidas pareciam irremediavelmente suspensas perante a urgência do fenómeno. Olhavam, liam: letras, vírgulas, gramática. Tudo aquilo ressoava na memória. Eu sei o que isto é!, diziam. Não existia nada de desconhecido naquele livro. Porém, revelava-se absolutamente incomparável. E nisto consistia o mistério. O olhar passava pelas palavras no mesmo gesto mecânico de sempre, da esquerda para a direita, atento às pausas, descendo suavemente a página. E, no entanto, assomava ao cimo desse olhar treinado uma sensação de tontura que depois alastrava por todo o corpo. O livro era insuportável, excessivo. Era preciso fechá-lo abruptamente para não se cair ao chão.
Mas por quê? Que subtil e raro poder circulava na normalidade daquele livro? Era isto que traziam para a rua. Alguns paravam subitamente no passeio, ou acordavam em sobressalto durante a noite, como se houvessem decifrado o problema. Escapava-se-lhes. Regressavam ao livro contrafeitos, mas num estado de profundo encantamento. Umas palavras mais, mentalizavam-se. Mas liam sempre mais do que podiam e a tontura assinalava-lhes de imediato a transgressão. Começavam a desenvolver um agudíssimo sentido dos detalhes. Viviam mais lentamente. Cuidavam do livro como se se tratasse de uma matéria preciosa, a mais preciosa. As suas vidas cresciam em intensidade.
Era um livro único, excepcional.
Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Sussurravam de uns para os outros: o que se passa com este livro? Trocavam olhares cúmplices quando entreviam num rosto alheio o efeito da mais breve leitura que fosse daquele livro. Os sintomas eram claros para quem já lera uma parte. Um tremor subtil na pele, um desajeitado modo de ter mãos, ora no bolso, ora na cara, ora rodando no ar, um passo levemente incerto, uma tensão nas sobrancelhas. Para quem não lera, porém, tudo corria calendariamente.
Os leitores daquele livro inquietante aproximavam-se, trocavam hipóteses de solução, procuravam desesperadamente calar o desconforto que a leitura lhes ia gradualmente instalando. As suas vidas pareciam irremediavelmente suspensas perante a urgência do fenómeno. Olhavam, liam: letras, vírgulas, gramática. Tudo aquilo ressoava na memória. Eu sei o que isto é!, diziam. Não existia nada de desconhecido naquele livro. Porém, revelava-se absolutamente incomparável. E nisto consistia o mistério. O olhar passava pelas palavras no mesmo gesto mecânico de sempre, da esquerda para a direita, atento às pausas, descendo suavemente a página. E, no entanto, assomava ao cimo desse olhar treinado uma sensação de tontura que depois alastrava por todo o corpo. O livro era insuportável, excessivo. Era preciso fechá-lo abruptamente para não se cair ao chão.
Mas por quê? Que subtil e raro poder circulava na normalidade daquele livro? Era isto que traziam para a rua. Alguns paravam subitamente no passeio, ou acordavam em sobressalto durante a noite, como se houvessem decifrado o problema. Escapava-se-lhes. Regressavam ao livro contrafeitos, mas num estado de profundo encantamento. Umas palavras mais, mentalizavam-se. Mas liam sempre mais do que podiam e a tontura assinalava-lhes de imediato a transgressão. Começavam a desenvolver um agudíssimo sentido dos detalhes. Viviam mais lentamente. Cuidavam do livro como se se tratasse de uma matéria preciosa, a mais preciosa. As suas vidas cresciam em intensidade.
Era um livro único, excepcional.
Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
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