Pescador de pérolas & filho

Os olhos enrolam-se à volta do cigarro.
Está cansado porque a noite entrou no
meio-dia. Abre uma lata, escorre o óleo
e é mesmo ali que molha o pão. O mínimo
gesto enquanto espera que a linha dê sinal
e o arraste para todo o sempre. Agora lá no
fundo lê os Lusíadas sem dividir as orações e o
pouco que pescava. Meia dúzia de olhos à soleira
da porta e a mulher escamando o chão. Dói-lhe
a vida dobrada que lhe deu. Agora vai de Canto
em Canto e sente que é um heterónimo
do Gama abrindo os mares até à sua deusa.
Que repouse em paz, chora a família os dias
sem pensão. O mais espigadote vai prà lida,
mas os tempos mudaram, o rapaz tem raiva na saliva,
no cheiro a peixe que não leva a nada. Os olhos
estão em terra. É fim de tarde, estrada marginal.
Os carros rolam em fila à velocidade de cruzeiro.



Rosa Alice Branco
Da alma e dos Espíritos Animais
Campo das Letras, 2001

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