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Agora que farei de ti de mim, Constança,
que este poema já não vais ouvir.
Agora que os dias passam lentos, cada vez
mais lentos como se caminhassem para o infinito
e que é infinito o silêncio com o qual
te aconchego como posso com as minhas
poucas mãos

Agora que segundo o teu olhar me explica
o caminho está traçado do meu peito
para o desconhecido, cheio de sons e de ti
e de mim já menos perdido nesta floresta
de arranjos pouco musicais excepto talvez
um ou dois bemóis que me deixaste
entalados entre a virilha do futuro
e o abismo da morte, Constança,
essa amiga inegável do descanso
que talvez mereças mas nem assim desejas

Agora que é janeiro e tudo parece outono,
até o frio cheio de folhas que não existem
e te esvoaçam na pele como arrepios
quando me pedes botijas mais quentes
para que a despedida não se faça ainda
e que os meus dedos possam ainda mais
percorrer caminhos sinuosos e simples
entre as tuas têmporas e o dia já esquecido
em que pouco a pouco uma vez nasci

Agora que no escuro do agasalho
te vejo partir contrariada
para uma terra que não conheço,
que não conheces, que sempre trataste
de regresso, que sempre, como a um extra-terrestre
te colocou medo e tristeza e saudades
do desconhecido de onde todos julgam
que vieste e para onde agora te encaminhas,
pequenina e corajosa, gigante como são gigantes
as palavras do mar

Agora que já não vais ouvir este poema
como acreditarei eu que vais ouvir este poema
e que os poemas embora nasçam
não morrem nunca como as gentes
essas gentes por aí desconsoladas
umas por não escrever poemas
outras por nem sequer nascer
outras ainda por não ouvirem, como tu,
o canto dos pássaros que na madrugada
se reuniam para te escoltar o sono
e que depois entre ti e ti reconversavam
entre uma floresta e uma câmara de trinta
e cinco milímetros movida por um amigo
que com mais pressa ainda te antecedeu
nesta viagem estranha
que nos pergunta sempre pelos corpos
quando afinal só os poemas estão vivos
e nós, meros cometas, nos limitamos
a por eles passar

Agora, Constança, que já nada posso
senão ver-te dizer-me cada dia mais baixinho
que tudo vale a pena e que a luz
é o único inevitável caminho
e que a luta é dolorosa mas sábia,
mas viçosa e voraz, cheia de altos,
de baixos, de sins e de nãos,
e sobretudo de clarões que depois, esvaídos,
se parecem contigo que aqui adormeces
mais tranquila do que os campos de violetas
onde me ias procurar

Agora que a solução
para que oiças este poema
está na equação do mundo
e na minha voz tão curta
nada mais de momentos consigo
senão acertar ritmos e contigo
uma a uma as badaladas respirar

Acabou-se o vento,
e se o cuco ainda caminha
é porque o desafio tremendo dos segundos
o alimenta em curvas e rectas
desalmadas na sua reconversão

Acabou-se a cantiga, a suave lengalenga
dos dias que amam dias que amam vozes
e que transformam com trabalho
o que era apenas isto, e passa
a poderosamente fazer parte do mundo,
esse que apesar do desprezo continua,
redondo como uma pera
e evidente como o vazio

Acabou-se o sangue,
e era sangue que eu agora te queria dar
e era um sopro mais inteiro
e era magia da tal que me ensinaste
mas dou comigo sentado e com as minhas
poucas mãos a nada mais poder
que aconchegar o teu silêncio
e guardar para depois tudo o que trago
nos olhos pendurados do teu mundo
que talvez passe a ser agora, afinal
também o meu, ou talvez já o fosse,
Constança, perdoa-me a momentânea
e translúcida confusão

E agora
que já não vais ouvir este poema,
agora que os melros se calaram
e que o outono de janeiro implacável chegou,
vais ter que me dar uma das tuas
muitas mãos,
vou ter que sossegar a mágoa e o mistério
que separa os corpos e une as almas
para depois, quando a lua finalmente o permitir
eu verificar de novo que me ouves, Constança,
e de uma vez por todas tudo em mim sorrir

25 de janeiro de 1992

Manuel Cintra
Infinito o Silêncio
Edição do autor, 1998

Capa e arranjo gráfico de Vitor Silva Tavares


5 comentários:

mar disse...

este poema está cheio, rebenta pelas costuras. é uma fotografia da saudade que é eterna.

gosto muito.

óptima escolha.

. disse...

é exactamente isso mar, uma saudade eterna, um infinito silêncio.

obrigada

bruno vilar disse...

Absolutamente assombroso. De uma força ímpar. Agradeço-te a partilha.

Beijo

. disse...

este poema faz doer, bruno. eu é que agradeço a quem o saiba ler.

beijo

bruno vilar disse...

Há algo mais real que a dor?
A dor,qualquer dor,acorda os sentidos.

Pensar dói, como dizia o outro.