«O O'Neill sabia de vinhos, de saladas, de tabernas onde se comia um bom cozido à portuguesa, de mulheres, de palavras e de amigos. Descobria autores e introduzia-os junto daqueles de quem gostava. Revelou Roger Vaillant a José Cardoso Pires. Indicou Alexandre Vialatte a Carlos de Oliveira. A mim, ofereceu-me Norge, António Machado, Benito Pérez Galdós, leu-me o original do meu primeiro romance, O Secreto Adeus, e disse-me que a prosa melhora quando se molha o aparo da caneta no tinteiro da poesia.
Um amigo generoso, um crítico sarcástico e, amiúde, inclemente. Os que lhe caíam no escárnio, aí! cuidado!, era terrível, temível. Luiz Pacheco sentiu-o no pêlo. Os que acalentava no coração, esses, eram agasalhados com fervor. Carlos de Oliveira, um desses. Zangado, reduzia a subnitrado o objecto da ira. Alexandre Pinheiro Torres, parceiro de infância, embrulhou-se com ele. O'Neill proclamou:
- Durante cinco anos não te vou falar!
Com Cardoso Pires, por motivos fúteis, cortou palavra e o gesto até ao remate final dos dias.
- Não tenho muitos amigos - dizia -, mas os que tenho não os largo da mão.
E assim foi. Contou-os e cantou-os, em belíssimos poemas, afinal, hosanas ao que sobrava dos nefastos dias. Um dos grandes poetas de Lisboa, um dos grandes poetas da amizade e do amor.
Bebia de mais, sofria de ternura - como no-lo disse. Que procurou o Alexandre O'Neill nesse turbilhão incessante que foi a sua curta vida? Morria de viver e vivia para morrer. Decifra-se essa contradição em quase todos os seus poemas.Uma subtil melancolia que se desprende das palavras e se infiltra no corpo de quem lê.
...
Certo dia levou-me e a Murilo Mendes a um restaurante próximo da Igreja de São Mamede. Joaquinzinhos e arroz malandro, tinto espesso, e salada. Chamou o dono da casa e ensinou-o:
- Salada, só com coentros e poejos. Salada sem coentros e sem poejos é para os grilos.
A receita era desconhecida no restaurante: Ficou na ementa para sempre e com a indicação: <>.
Um dia, falei-lhe que só conhecia o livro, Las Duas Casacas, de Galdós. Ia a fala a talhe de foice. Bebemos um pouco mais e a conversa deslizou para outras e desvairadas direcções. Pois é. Três dias depois apareceu-me com dois sacos de plástico com os "Episodios Nacionales", do grande prosador espanhol. E afastou-se, rápido, sem ouvir os meus comovidos agradecimentos.
Vivia com dificuldades, é bom que se diga. Arredondei-lhe a conta ao fim do mês, conseguindo-lhe uma colaboração no Diário Popular, onde então eu trabalhava.
...
Um homem que viveu numa dobadeira de vertigens morreu lentamente. Melhor: foi morrendo devagarinho. Num fim de tarde cheio de chuva toquei-lhe no batente. Pediu-me para não fumar. Era a primeira vez que formulava tal pedido, nas vezes que o visitava, doente, caído, sem riso claro, sem ladinice, mas sempre ornado por uma grandeza e uma integridade admiráveis.
- Anda uma bolha de ar dentro das minhas veias. Ou dou cabo dela ou ela dá conta de mim.
Ele sabia-se de mal de morte. Mas eu sabia, ah!, se sabia!, que ele sofria do mal de viver. Do mal de viver português. »
Um amigo generoso, um crítico sarcástico e, amiúde, inclemente. Os que lhe caíam no escárnio, aí! cuidado!, era terrível, temível. Luiz Pacheco sentiu-o no pêlo. Os que acalentava no coração, esses, eram agasalhados com fervor. Carlos de Oliveira, um desses. Zangado, reduzia a subnitrado o objecto da ira. Alexandre Pinheiro Torres, parceiro de infância, embrulhou-se com ele. O'Neill proclamou:
- Durante cinco anos não te vou falar!
Com Cardoso Pires, por motivos fúteis, cortou palavra e o gesto até ao remate final dos dias.
- Não tenho muitos amigos - dizia -, mas os que tenho não os largo da mão.
E assim foi. Contou-os e cantou-os, em belíssimos poemas, afinal, hosanas ao que sobrava dos nefastos dias. Um dos grandes poetas de Lisboa, um dos grandes poetas da amizade e do amor.
Bebia de mais, sofria de ternura - como no-lo disse. Que procurou o Alexandre O'Neill nesse turbilhão incessante que foi a sua curta vida? Morria de viver e vivia para morrer. Decifra-se essa contradição em quase todos os seus poemas.Uma subtil melancolia que se desprende das palavras e se infiltra no corpo de quem lê.
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Certo dia levou-me e a Murilo Mendes a um restaurante próximo da Igreja de São Mamede. Joaquinzinhos e arroz malandro, tinto espesso, e salada. Chamou o dono da casa e ensinou-o:
- Salada, só com coentros e poejos. Salada sem coentros e sem poejos é para os grilos.
A receita era desconhecida no restaurante: Ficou na ementa para sempre e com a indicação: <
Baptista-Bastos
A cara da gente
Oficina do livro, 2008
1 comentário:
Gostei muito do texto. Hei-de experimentar a bendita salada.
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