O que sopra, o que dorme

Um corta a lúcia-lima
ou agarra sócos e sóis.
Dorme depois no meu alento.
Estão em paz o que respira e o que dorme.
A frase palidíssima
através das grades.
A erva e a língua.
E o jardim do leite
submerge-me os trapos.

O outro dá nome à colher do pedreiro
ou ao papel branco das fadas.
Ei-lo a puxar o fio de lã
das gengivas, dos joelhos.
As pequenas pulsações
abalavam a casa.

Um deles, no mogno,
guardava as vozes mortas.
O vazio assustava
os filhos dos ladrões.
E a sebe do curare
protegia da luz
os voyeurs adormecidos.

O outro encontrara
foices de papel dourado,
bolhas e bagatelas.
Ei-lo a mendigar
uns beijos requentados.
No corpo do escaravelho
desbravo os meus caminhos.

Um armava um laço
de penas e alfinetes.
Mais que morto de cansaço
esperava à saída
os perfeitos funcionários.
E voltava contra mim
a estaca preparada
para o suplício oblíquo.
Assedia-me o duplo do azul.

O outro pusera a mão
no raio por descuido.
E murmura depois:
"Pintem na própria pele
escaravelhos e víboras.
Esfreguem este meu corpo
com esperma e com urtigas".
E juntos construamos
abrigos de campainhas.

Um expunha a sua vida,
projectos clandestinos.
Contar os próprios passos
só conduz à loucura.
Às escuras, num quarto
alguém dizia: " Fala!"
Mas falar, falar, falar
só conduz à loucura.

O outro gostava de unguentos
- untava o corpo todo -,
de pedras furadas e do simples cobre.
Atava um manequim
à proa de um navio.
Ou falava aos coelhos,
apanhava agulhas,
pontas de lã, gravetos.

Um quebrava as amarras.
A escrita do talhante
talha o fio da vida.
Nada perdura seco:
a palma da mão é asa
de uma andorinha de lã.
Riba. Ribeiro. Amor.

O outro corta-se ao fogo.
Crepitam cem mil anões.
A minha magia negra
acolhe o sangue alheio.
Envolvo em casca fina
as mãos, os pés achados.
Quantos calos, falanges...
A árvore, entre as coxas,
dilacera as línguas e os tendões.


Jacques Izoard
Jardins mínimos e outros poemas
Quetzal,  1994
Tradução colectiva

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