O que é para ela a minha consciência?

Depois, quando souber já muitas coisas, quero ainda
simplesmente contemplar os animais, para que algo
da sua mutação se introduza nas minhas
articulações; quero ter uma existência breve
nos seus olhos que me seguram
e lentamente me soltam, serenamente, sem me julgarem.
Quero que os jardineiros me digam
muitas flores para que eu aos cacos
dos belos nomes próprios acrescente
um resto das centenas de perfumes.
E quero comprar frutos, frutos onde por dentro
se encontra de novo o país, até ao céu.
Pois isto tu compreendias: os frutos plenos.
Os que em taças punhas à tua frente
equilibrando com as cores todo o seu peso.
E, como os frutos também, vias as mulheres
e vias as crianças, de dentro
impelidas para as formas da sua existência.
E por fim viste-te a ti própria como um fruto,
despojaste-te dos teus vestidos, levaste-te
para diante do espelho, deixaste-te entrar
até ao teu olhar; isto ficou grande, à tua frente,
e não dizia: isto sou eu; não, antes: isto é.
Tão sem curiosidade era por último o teu olhar
e tão despossuído, tão verdadeiramente pobre,
que nem a ti te desejava: sagrado.
Assim te quero recordar, tal como te
colocavas dentro do espelho, a fundo
e longe de tudo. Porque vens diferente?
Porque te contradizes? Porque me queres
convencer de que naquelas contas de âmbar
que trazias ao pescoço ainda havia algum peso
daquele peso que no Além
nunca pertence a imagens apaziguadas? Porque me mostras
na tua atitude um mau pressentimento?
Quem te mandou ler os contornos
do teu corpo como as linhas da mão,
de modo que eu já não os possa ver sem destino?
Aproxima-te da luz da vela. Não tenho medo
de olhar os mortos. Quando vêm
têm direito a permanecer
no nosso olhar como as outras coisas.
Aproxima-te; fiquemos por momentos em silêncio.
Olha para esta rosa sobre a minha a mesa;
não é a luz que a rodeia tão tímida
como a que brilha sobre ti? Também ela não devia estar aqui.
No jardim lá fora, não misturada comigo,
devia ter ficado ou partir, -
agora dura assim: o que é para ela a minha consciência?



Rainer Maria Rilke
«Requiem por uma Amiga»
As Elegias de Duíno
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de Maria Teresa Dias Furtado

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