Choveu

o dia vai largo, quase transparente
tristemente abandonado pelo mar

choveu

não começou o mundo ainda

e eis que desce o pano:
trocaram-nos os papéis…
és tu quem acende o chão da noite
sou eu quem repete a canção adormecida, estranho ofício

o dia vai largo, e subitamente já não estremeço
contemplo o cenário inventado: sem futuro, desejante, inteiro

no dorso das nuvens tatuado, espreita um sereno nunca
as ruas sem memória, o fulgor da terra, o mudo mar amanhecendo
sem ruído, inclino o coração e a cidade é sem mistério
mordendo a pele da água e beijando o destino no cais da partida

quase transparente este dia que me visita sem aviso prévio
de orvalho vestido, à beira da alegria, avariando as roldanas do tempo
e sussurrando a hesitação do instante que logo recomeça
e é tão breve que a sombra arde em suas chamas

choveu e já não estremeço:
vem vento, dizem: mas, ainda assim, não começou o mundo
vagarosamente vem: é que basta dizeres este corpo em que te deitas
e jurares ao firmamento que em ti começa a neve ausente

não olhes agora e assina, a tinta permanente, a edição ne varietur
decerto tu saberias relatar o meu cv e cobrir o rosto com a limpeza da luz
ouve o rumor da chuva que ainda demora: um perdão de cada vez.
vem vento, dizem, e o dia vai largo, tão largo como o rio em que morreste

o cenário está completo:
a tristeza que em ti se despede não existe
e peço-te que em mim inventes um novo dia,
vamos trocar pela segunda vez os papéis que em sorte nos calharam
não receies, pois sei dos nomes que decoras e dos recados extraviados

já desceu o pano e o mundo tarda em iniciar

choveu



Ricardo Gil Soeiro
O alfabeto dos astros
Edium Editores, 2010

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