«É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios. O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável. Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não nos podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança  a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.
  Acredite-me, as religiões enganam-se desde o momento que pregam moral e fulminam mandamentos. Deus não é necessário para criar culpabilidade, nem para castigar. Para isso bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do juízo final. Permita-me que ria respeitosamente. Eu espero-o a pé firme: conheci o que há de pior, que é o juízo dos homens.»

(...)

Albert Camus
A Queda
Livros do Brasil, s/d
Tradução revista de José Terra

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