_Chego a ter saudades dos dias do teu
sofrimento atroz na cama de hospital,
quando através dos corredores nauseabun-
dos atravessados de gemidos me dirigia
para a múmia densa do teu corpo envolto
em ligaduras e de súbito ouvia emergir
como que o «tom» da nossa aliança, a tua
voz, doce, musical, controlada, resistindo
com orgulho à fealdade do desespero,
quando por tua vez ouvias o meu passo,
e murmuravas, tranquilizada: «Ah, estás aí».
_Punha a mão no teu joelho, por cima
do cobertor sujo e tudo desaparecia
então, o mau cheiro, a horrível indecên-
cia do corpo tratado como um barril
ou um esgoto, por estranhos afadigados
e preocupados, tudo ficava para trás,
deixando os nossos dois fluidos, através
das ligaduras, tornarem a encontrar-se,
juntar-se, misturar-se, num aturdimento
do coração, no auge da desgraça, no auge
da doçura.
_As enfermiças, o interno, sorriam;
os teus olhos cheios de fé apagavam os
dos outros.
Henri Michaux
Nós dois ainda
Bonecos Rebeldes, 2009
Tradução de Rui Caeiro
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