__Murphy tinha estado recentemente na cidade de Cork, Irlanda, a estudar com um homem chamado Neary, o qual, por essa altura, era capaz de fazer parar o coração sempre - ou quase sempre - que assim o desejava, e de o manter parado durante todo - ou quase todo - o tempo que queria. Esta rara faculdade, adquirida depois de anos de estudo ao norte de Nerbudda, na Índia, Neary só a aplicava em circustâncias especiais, reservando-a para as situações realmente insuportáveis, como quando, por exemplo, tinha vontade de beber e não podia, ou se encontrava num grupo de Galeses sem poder escapar-se, ou sentia os formigueiros duma forte inclinação sexual que não podia satisfazer.
__Não era com o propósito de conseguir um coração assim que Murphy tinha ido sentar-se aos pés de Neary, porque sabia que um tal órgão em breve se revelaria fatal para um homem do seu temperamento, mas simplesmente com a esperança de obter para o seu um pouco do que Neary, então um Pitagórico, chamava a Apmónia. Isto porque Murphy tinha um coração de tal maneira irracional que não havia médico que conseguisse descobri-lhe o segredo. Inspeccionado, palpado, auscultado, radiografado ou cardiografado, era um coração como os outros. Mas, apenas coberto e no cumprimento das funções era como Petruchka prisioneiro, ora fazendo um tal esforço que parecia ir imobilizar-se a todo o instante, ora num tal estado de ebulição que dir-se-ia ir rebentar. Era ao ponto médio entre estes dois que Neary chamava Apmónia. Quando se fartou de lhe chamar Apmónia, começou a chamar-lhe Isonomia. Quando se cansou de lhe chamar Isonomia, chamou-lhe Harmonia. Mas, fosse o que fosse que lhe chamasse, no coração de Murphy é que isso não entrava. Neary não conseguia conciliar os contrários no coração de Murphy.
__As suas despedidas foram memoráveis.
Neary acordou de um dos seus sonos de pedra e disse:
- Murphy, a vida não passa de figura de fundo!
- Um lento regresso ao lar - respondeu Murphy.
(...)


Samuel Beckett
Murphy
Editorial Presença, 1961
Tradução de José Manuel Simões

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