Noite. E mais uma vez, a luta nocturna e encarniçada com a morte. A sala parece que vem abaixo com orquestras demoníacas; os momentos de sono aterrador, as vozes que gritam lá fora, o meu nome continuamente repetido com desprezo por imaginários grupos que me aparecem, as espinetas da treva… Como se ainda não bastassem os ruídos autênticos destas noites da cor do cabelo grisalho! Não é o tumulto dilacerante das cidades americanas, esse ruído contundente dos grandes gigantes moribundos, mas os uivos dos cães vadios, os gatos que levam toda a noite a anunciar a alvorada, o rufar de tambores, os gemidos que, mais tarde, se hão-de encontrar transformados em penas brancas, enrodilhadas nos fios telegráficos de quintais, ou em aves domésticas empoleiradas em macieiras, a eterna tristeza sempre desperta do grande México. Quanto a mim, gosto de transportar a minha tristeza para a sombra dos velhos mosteiros, de levar a minha culpa para claustros e tapeçarias debaixo dos quais a possa ocultar, e para o abrigo de incomparáveis cantinas onde oleiros e mendigos coxos bebem ao alvorecer e cuja beleza de junquilho se revela neles depois de mortos. Fica sabendo, Yvonne, que, quando me deixaste, fui para Oaxaca. Não há frase mais triste. Deverei contar-te, Yvonne, o horror da viagem através do deserto, no comboio de via reduzida, instalado numa desconjuntada e estrepitosa carruagem de terceira? Deverei também falar-te da criança, cuja vida eu e a mãe salvámos com o esfregar-lhe a barriga com tequilla da minha garrafa, ou dizer-te, quando fui para o quarto do hotel onde, em tempos, fomos felizes, o barulho que faziam a matar criação na cozinha, o que me fez sair a procurar a claridade da rua? E que, mais tarde, nessa noite, vi um abutre poisado no lavatório? Horrores que só os nervos de um gigante suportariam! Não, os meus segredos são daqueles que se guardam nas sepulturas e têm de se manter inviolados. E é por isso que me imagino um grande explorador que, tendo descoberto uma terra extraordinária, jamais poderá abandoná-la, para a dar a conhecer ao mundo, mas essa terra tem o nome de inferno. Não é, evidentemente, o México. Essa terra acha-se dentro do meu coração. Suponho que sei o meu bocado a respeito do que seja sofrimento físico. Mas isto é o pior de tudo – isto de uma pessoa sentir a alma a morrer. Não sei se é porque esta noite a minha alma morreu de facto, que eu, neste momento, sinto qualquer coisa que se assemelha a paz. Ou será porque, mesmo através do inferno, exista um caminho, como Blake muito bem sabia e porque, ainda que eu não tome por esse mesmo caminho, o tenha avistado ultimamente em sonhos? (Depois de alguns mescais.) Desde o mês de Dezembro de 1937 e desde que te foste e me dizem que estamos na Primavera de 1938, tenho andado a lutar deliberadamente contra o meu amor por ti. Não me atrevo a render-me a ele. Tenho-me agarrado a todas as raízes ou ramos que me possam sustentar sozinho sobre este abismo da minha vida, mas já não consigo enganar-me a mim próprio. Se tiver de sobreviver, será só com o teu auxílio. De outra maneira, mais tarde ou mais cedo, acabarei por cair. Ah, se ao menos me tivesses deixado como lembrança alguma coisa por que te pudesse odiar, de modo a que, enfim, nenhum bom pensamento a teu respeito me pudesse aflorar nesta região terrível onde me encontro! Mas, em vez disso, mandaste-me aquelas cartas… E, se tu tivesses também escrito logo, as coisas podiam ter-se passado de maneira diferente – um postal que fosse que me tivesses escrito, até a respeito da angústia comum da nossa separação, apelando novamente para nós próprios – de qualquer maneira e fosse como fosse – dizendo que nos amávamos, qualquer coisa – um simples telegrama que fosse. Mas tu esperaste demasiado – ou pelo menos é o que, neste momento, me parece – esperaste até para lá do Natal e do Ano Novo e, nessa altura, não fui capaz de ler o que me dizias. Não: raramente me encontro liberto de tormentos, ou suficientemente desembriagado para aprender mais alguma coisa além das intenções de orientadora que transpareciam da tua carta. Mas podia e posso tocar-lhes. Creio que trago algumas comigo. Mas causa-me tanto sofrimento lê-las! Parecem-me demasiado pensadas. Agora, não tenho coragem para o fazer. Não posso lê-las, que me despedaçam o coração. E, de qualquer maneira, a verdade é que vieram tarde demais. (Depois de mais alguns mescalitos, ao alvorecer, no Farolito.) De qualquer maneira, a verdade é que o tempo não passa de um curandeiro parlapatão. Como é que alguém pode ter a pretensão de me falar de ti? Não podes imaginar o que é a tristeza da minha vida. Incessantemente perseguido, quer a dormir, quer acordado, pela ideia de que tu poderás precisar da minha ajuda que, afinal, te não posso dar, tal como eu preciso da tua, que me não podes dispensar porque só em visões e em todas as sombras te encontro, vi-me forçado a escrever-te esta carta, que nunca te mandarei, para te perguntar o que havemos de fazer. Não achas isto extraordinário? E, contudo, não devemos isso a nós próprios, a essa personalidade que criámos, independentemente de nós mesmos – o fazermos uma nova tentativa? Ai de mim, que é que foi feito do amor e da compreensão que em tempos possuímos? Que é que lhes irá acontecer… que virá a ser dos nossos corações? O amor é a única coisa que imprime sentido aos nossos pobres caminhos neste mundo; esta afirmação não é – receio-o bem – uma descoberta minha. Vais pensar que estou doido, mas é assim que eu bebo, como se estivesse a receber eternamente um sacramento. Oh, Yvonne, não podemos consentir que aquilo que nós criámos mergulhe no esquecimento desta maneira obscura.
Malcolm Lowry
Debaixo do Vulcão
Relógio D'Água Editores, 2007
Tradução (revista) e Notas de Virgínia Motta
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