(…)
E ele atravessa a rua, passando pelo tempo, de pedra em pedra, com um cigarro na mão para pedir lume ao cigarro alheio, que brilha no outro lado, ao cimo dos três degraus.
Vai ser assim: dá-me lume, por favor?, e o cigarro encostar-se-á ao seu, o lume passará de um para outro, de uma pessoa para outra pessoa, e então, no meio da eternidade deserta, será sim o dia de hoje.
Mas a noite é imensa, quer dizer: a noite do lugar e do tempo, a noite da nossa solidão — é imensa, e apenas um pequeno órgão vivo palpita algures, vibra rapidamente, e amortece-se, e desaparece.
Então, uma vez mais a noite se levanta de nós, e o que estremece é a carne, a nossa, cega e desamparada — mas fremente na sua cegueira e desamparo.
Sabes que estás só? — pergunta a carne à carne —, sabes que a noite se ergueu de ti, como se fosses o seu próprio e único talento, e que esse talento te cerca como uma atmosfera, o morto clima que transportas em ti, de um lado para outro, ao longo das pedras, ao longo de todos os lugares do homem?
Ela sabe, ou pelo menos sabe que sabe.
E é demasiado.
Por isso, olha e espera.
E vê de novo a brasa que estremece na escuridão como uma planta que crescesse e florescesse na terra negra, ou um animal cujo calor abrisse uma brecha no tempo frio.
A carne embriaga-se com imprecisas metáforas de salvação — que salvação?! — com um movimento subterrâneo de analogias, e ele diz: vou pedir-lhe lume.
Vai através do bairro múltiplo, o tempo que o escuro abafou, e então é como se fosse fora do tempo, ou dentro de todo o tempo, à procura do lume para o seu cigarro.
Eles construíram e os anos destruíram, e eles reconstruíram as coisas gastas e construíram outras novas.
Que é isto?
Quer dizer que a carne renasce, e é essa a tarefa?
A noite vem sempre, mas talvez trabalhem também de noite.
Às vezes ouvem-se as picaretas e os martelos, à distância, durante certas noites.
E depois é manhã, e apercebemo-nos de que existe uma coisa nova, um corpo que se organiza para o dia, e isso foi um secreto trabalho nocturno.
Eles acreditam, então — será verdade que ousam acreditar?
Pode-se avançar nas trevas.
Uma, duas vezes, foi-nos indicada uma luz fugitiva — e depois sabemos.
Talvez ainda mais nítida, a topografia marcou-se na nossa cegueira, e então caminhamos, caminha ele com o seu cigarro por acender, a sua perseguição ao fogo.
Não é uma admirável virtude do fogo, não será até um milagroso talento das trevas que, aqui e ali, durante um segundo, o fogo abra a sua pequena rosa trémula, e o homem possa respirar na cega atmosfera dos séculos?
É— eis que ele o diz para si, com uma força maior do que ele próprio, o inventado poder da sua vertiginosa, momentânea fé.
Caminha pelos anos pétreos, com os pés a decifrarem o empedrado e os degraus do bairro.
Ouve os próprios passos, porque sempre ouviu as pancadas do coração — por aí é que reconhece estar vivo, embora isso seja violento demais e demasiado precipitado para a verdadeira harmonia que, possivelmente, seria o estar vivo.
Mas respira, isso sim, o sangue corre pelas veias e artérias, corrompe-se e purifica-se dentro da confusa massa da sua dor de homem, e anda, ele anda, sobe, desce.
Contudo, os passos que ouve, como se fossem as pancadas fortes do seu sangue, parecem distanciar-se.
Pára.
E os passos continuam, afastando-se.
Mais longe, aparece a brasa do cigarro.
O outro foge.
Porque foge?
Que medo inspira assim o desejo do conhecimento, ou o desejo do amor?
Ë a caça?
Existem aqui o desígnio, o jogo, o ritual — e a alegria bárbara e o primitivo pânico da caça?
Porque o amor é mortal (o amor é mortal?).
Talvez se adivinhe que sim, e obscuramente se saiba que é mortal o conhecimento.
Talvez seja isso o que melhor se conheça do conhecimento — a sua natureza mortal.
Os passos do outro fogem pelo tempo fora, ouvem-se — embaraçados e rápidos — perdendo-se nas escadas, pelas ruas ondulantes, sob os arcos.
Um momento ecoam no meio de uma praça, o cigarro brilha, forma-se uma súbita coroa de silêncio.
Haveria palavras para dizer, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
Mas não haveria resposta.
Ou seria: tenho medo, ou então: é o jogo.
Contudo, não se sabe bem o que acontece, por isso não haveria resposta.
Medo?, porquê medo?, dir-se-ia, jogo, que espécie de jogo?
E as palavras nunca mais acabariam.
Não mais existiria este silêncio no qual, ofegantes, sabemos com tanta dor que ainda estamos vivos.
Por isso é que andamos, agora com todas as artes da caça, devagar, depressa, silenciosamente, cercando a presa.
Amo-te — diríamos nós, no exacto instante de lhe cravar o punhal no meio do peito.
E depois desejaríamos que se fizesse luz, uma grande luz branca, o sol, para vermos o sangue correr e, possivelmente, afogar a nossa boca no sangue amado.
Para conhecermos tudo, até ao fundo e até ao fim. Porque o amor e o conhecimento são as artes do crime.
Tenho um ramo de flores para ti, diz o amante: são flores venenosas.
Mas toda a gente sabe isto: ninguém deseja nada do amor.
É o tema eleito das palavras.
Eis a razão por que o outro está escondido na praça, ao meio da qual existe um largo fontanário, com a sua rodada taça de pedra, de onde transborda uma água silenciosa e dormente.
A brasa do cigarro marca uma curva no ar e cai na água.
É um indício.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois tudo será mais difícil.
Porque será a perseguição declarada, sem o pretexto de pedir lume.
Também não haverá já a indicação do lume, no meio da noite — o sinal de que ali está a pessoa, viva, fumando, respirando, tremendo.
Porque foges?, e enquanto, no mais secreto da sua aflição, ele o pergunta, corre em direcção ao fontanário e quase esbarra com o outro.
Sentem-se, mútuos, únicos, arfam no escuro da praça, a treva treme levemente na água adormecida.
Mas ele diz (e quem sabe se isso é absurdo?) diz: lume, e o outro escapa-se, e põe-se a correr em volta do fontanário.
Os sapatos chapinham na água e a ele, que já começou a persegui-lo, correndo também em torno da taça de pedra, chapinhando do mesmo modo na água vazada, ocorre-lhe um insólito pensamento: caminhamos sobre as águas.
Então abranda um pouco a corrida, inclina o corpo para a direita, e mete a mão na água da taça.
É um ruído novo, virgem, e o contacto da sua carne com a água faz nascer em si uma confusa alegria, o sentido de uma festa natural, o desejo de morrer ali, agora, triunfalmente.
E o outro? — o outro foge, e como não abrandou o passo, nem mergulhou a mão na água, nem pensou (supõe-se) na alegria de uma festa mortal, o outro adiantou-se, e já se encontra no lado oposto do fontanário.
E é ágil, essa criatura sem nome, o ser que se ama, aquele que se persegue e a quem se deseja conhecer, para suplicar lume, ou voz, ou vida, ou sangue, ou sabe-se lá o quê.
(…)



Herberto Helder
Apresentação do rosto
Editora Ulisseia, 1968
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