Ontem, a velha Carlota dos moinhos d'água saiu da mercearia com dois sacos de compras, chegou a casa e pensou em matar-se. Porque chora vossemecê, Ti Carlota? Sentou-se num banco que tem sempre encostado ao lume. No verão, o lume está apagado e ontem o lume estava apagado. A velha Carlota dos moinhos d'água sentou-se no banco e nem guardou a embalagem de Planta no frigorífico, nem guardou no armário de rede os pacotes de bolacha maria, que comprou para os cachopos que a vêm visitar. Sentou-se num banco que tem sempre encostado ao lume. Já não presto para nada. Os seus olhos eram grandes. As lágrimas desciam-lhe pelas pregas da pele do rosto. Os lábios da velha Carlota dos moinhos d'água não são beijados há cinquenta anos. Ninguém olha para eles. São finos e secos. Já não presto para nada. A velha Carlota dos moinhos d'água levantou-se do banco. As suas mãos são muito magras: a pele solta, as veias, os ossos, as unhas cortadas com a tesoura da costura. As suas mãos começaram a desabotoar a bata negra. Depois de cada botão, um pouco mais da combinação branca de flanela. Porque chora vocessemecê, Ti Carlota? As suas mãos soltaram as alças da combinação. A velha Carlota dos moinhos d'água, no meio da cozinha, despiu-se toda nua. Uma lágrima caiu-lhe sobre o peito, desceu-lhe pela barriga, pela perna e secou antes de lhe chegar ao joelho. Tirou os ganchos, desprendeu a poupa e os cabelos brancos estenderam-se-lhe pelas costas ligeiramente curvadas. A porta da velha Carlota dos moinhos d'água nunca está fechada ao trinco. Entrei. Olhou para mim, toda nua, a chorar. A casa era escura e fresca. Os dois sacos de compras estavam no chão, junto à roupa caída. Porque chora vocessemecê, Ti Carlota? Já não presto para nada. Não diga isso, Ti Carlota, a gente gostamos muito de si.
José Luís Peixoto
cal
Bertrand Editora, 2007
José Luís Peixoto
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Bertrand Editora, 2007
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