«Lenz não tinha ilusões acerca da terra que pisava: havia entre a natureza e o homem um ponto de ruptura que há muito fora ultrapassado. Existia uma luz nova nas cidades, a luz da técnica, luz que dava saltos materiais que antes nenhum animal conseguira dar; e essa nova claridade aumentava o ódio que os elementos mais antigos do mundo pareciam ter guardado, desde sempre, em relação ao homem. Ele receava da mesma maneira um terramoto e um dia de sol em que pássaros desconhecidos parecem iniciar uma amizade eterna com casais de apaixonados que não conhecem. Nestes dias calmos, Lenz via uma saúde falsa, uma preparação da maldade – alguém, com cuidado, limpava o cadafalso na véspera de a vítima o pisar. Ele não se entusiasmava com a ordem dos elementos; sabia bem que essa ordem não era confundível com a ordem das cidades, onde o maestro, as leis e o polícia indicam o caminho certo de deslocação da música e dos criminosos. Sabe-se bem para onde cada coisa vai. Mas o que era ordem para a natureza era estranho para a cidade.
Por vezes Lenz chegava mesmo a formular a questão, dirigindo-se mentalmente para o jardim tranquilo: em que estará ele a pensar? Como se realmente ele próprio e a natureza estivessem num jogo no qual a racionalidade tinha importância, mas também a força muscular e a vontade. Um dia tranquilo era, para Lenz, um dia de saúde da natureza e, nesse sentido, dia em que esta acumulava forças que mais cedo ou mais tarde atiraria contra os humanos. Lenz não confiava na natureza.»



Gonçalo M. Tavares
Aprender a rezar na Era da Técnica
Editorial Caminho, 2007

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