«Ainda não viveste, e no entanto, já está tudo dito, tudo acabado. Só tens vinte e cinco anos, mas o teu caminho já está traçado. Os papéis, as etiquetas estão prontos: desde o bacio da tua primeira infância até à cadeira de rodas da tua velhice, todos os assentos aguardam a sua vez. As tuas aventuras estão tão bem descritas que a revolta mais violenta não faria pestanejar ninguém. Por mais que saias para a rua e mandes às urtigas os chapéus das pessoas, e cubras a cabeça de imundícies, e andes descalço, publiques manifestos, dês uns tiros de pistola à passagem de um qualquer usurpador, de nada servirá: a tua cama já está feita no dormitório do hospício, o teu talher está posto à mesa dos poetas malditos. Barco bêbedo, miserável milagre: o Harrar é uma atracção de feira, uma viagem organizadora. Tudo está previsto, tudo está preparado até ao mais ínfimo pormenor: os grandes arroubos do coração, a fria ironia, as grandes dores, a plenitude, o exotismo, a grande aventura, o desespero. Não venderás a tua alma ao diabo, não irás, de sandálias nos pés, precipitar-te no Etna, não destruirás a sétima maravilha do mundo. Tudo está já preparado para a tua morte: a bala que te levará deste mundo já está fundida há muito tempo, já designaram as carpideiras para acompanharem o teu caixão.»
Georges Perec
Um Homem que Dorme
Editorial Presença, 1991
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