II - A imagem na almofada dos cadavéres
1
A imagem na almofada dos cadáveres
arredonda as bolsas da terra
têm os pés atados com arames
a réstia das orelhas em sangra ao corte
amarradas nos ombros mutilados
encobertos, a carne em secadouro
os tornozelos nus comidos de osso
o patriotismo, a dignidade, o dever dos mortos
a consumir-se neles como uma fome.
2
As mãos na cinza entaladas urnas
estendem dedos na criança, o rosto fechado
saúdam a marcha aos soldados, as botas
a romperem a boca áspera ao pó
de camisolas vermelhas empinam o milho nos dentes
os braços finos na espuma dos camuflados,
um rapaz desprotegido na dobra da terra
esquece os mortos a fazer.
3
Vão em fila como vidros na noite
as costas febris, os olhos a deslizarem
a espinha das montanhas
aquecem-se nas barbas dos velhos
lavam-se na bacia das placentas
vestem o cheiro dos animais
deixam os olhos abertos,
organizam o corpo
num só morto a enterrar.
4
Nas ruas estreitas de laje afogam filhos
amortecem baixas ao ventre a secar
campas pequeninas onde vão morar
as mulheres a romperem choro ao rio
as bermas da estrada no caminho
marcam de pedras o grito delas
cambaleiam, caiem ao lado das outras
rasgam a pele a nascer, os homens
esquecidos nos braços delas.
5
Fazem rondas de órfãs no meio das vestes
sentadas, lado a lado troncos de pele
as bocas caladas como águas,
o barulho dos lenços
as sombras nos tecidos, as mãos enrugadas nos peitos
abrem os sexos nos sacos de farinha
cortam os pulsos nas tendas
abraçadas no calor dos filhos
enterradas nos panos, cemitérios
esfolam a cor dos olhos.
6
Lavam os peitos em farinhas de água
escondem-se nuas, secretas nos pátios
descobrem da morte dos irmãos
as cabeças num cofre de lenços negros
põem-se de cócoras secam correntes
murcham sem verem, abrem gretas de filhos
dormem das mães nas telas do chão
o forno do pão a abrir inteiro
a cinza ao dia.
7
A estrada corta o corpo ao sul
seguem pela torrente, roçam os pés nas rias
os campos de algodão como malhas de chumbo
a descalçarem osso, corpos fronteiriços
os mortos a patrulharem as ruas
dizem adeus no centro ao casario
vão e voltam na vala onde se enterram.
Alexandre Nave
Columbários & Sangradouros
Quasi Edições, 2003
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário