um homem caminha numa álea, entre as árvores, vestido de fa-
to completo, cinzento ou azul, e chapéu de feltro preto, vê-se
o vinco perfeito das calças, as costas do casaco sem uma ruga,
os punhos brancos da camisa, e a mão direita numa oscilação
fraca de pêndulo, é outono, um esquilo, numa corrida rente
ao chão, estaca de súbito, ergue-se nas patas traseiras e fica a
olhar o homem, a percorrê-lo com a sua paragem, uma rabana-
da de vento empurra as folhas secas, num áspero movimento:
encalham no pedrisco, avançam um salto, voltam a encalhar,
deslocam-se aos sacões, numa trajectória intermitente, até se
juntarem contra o tronco de uma faia, num monte poroso onde
circula o vento,
e que de repente explode:
as folhas voam num silêncio de vidro, volteiam no ar, sujam
a casca das faias ou o branco aguado dos seus troncos, um obus
rebentou, na álea serena do parque, e atirou os restos do outo-
no pela paisagem, uma gralha atravessa em voo a diagonal do
mundo,
tudo cai lentamente,
uma folha, a última, balouça a côncava secura, com uma for-
miga abrigada no seu côncavo, a nave vai, la nave va, em rota
mitigada pelo vento que a arrasta por escarpas, volutas, planos
inclinados, sem nunca virar, o homem segue-a com os olhos,
vê-a subir até à copa das árvores, confundir-se com ela, desa-
parecer um momento, recolher-se um momento no silêncio da
copa, e depois desprender-se dessa cor ferrugenta, para lhe
cair aos pés, ele baixa-se e agarra-a, fica com ela na palma da
mão, fremente, não a mão mas a folha, num estremecimento
de partida,
este homem perdeu-se, ou vê-se perdido,
não conhece o jardim, nem a casa por entre as árvores, não re-
conhece o céu, o cinzento esse céu, que não é mais do que um
espaço a abrir-se para nada, este homem não se lembra do nome
das árvores, nem o do pássaro negro que se lhe atravessou no ca-
minho, aos pulos, numa corrida, nem para onde vai nem de onde veio,
este homem sabe unicamente que tudo o que não sabe é um
imenso nome que o mata e, por isso, pára, interrompe a doença,
e vê,
os seus olhos têm a técnica cirúrgica do recorte, atentos à fo-
lha, aos rebordos encarquilhados, às placas circulares de fun-
gos, castanho sobre o amarelo torrado, às fissuras por onde ela
há-de abrir, romper-se, até ficar reduzida a nervuras, como a
pena de um pássaro ou os ossos da mão, ele segura-a pela bai-
nha, para que o vento a destrua, pedaço a pedaço, lhe arran-
que a forma de folha, a descarne, a desfolhe, até ao seu esqueleto,
fina espinha de peixe, e assim veja o tempo a construir-se, se
veja nesse tempo, contido na sua mão, entre os dedos, na for-
miga que ao longo do braço lhe traçou na sua caminhada uma
linha de cadáver, lhe desenha o envelhecer no corpo, o homem
sabe que a palavra enorme escondida se aproxima dele, corro-
siva, não um fantasma mas uma ameaça, em tudo aquilo que
vê se desenha o rigor dessa ameaça, tudo tem por detrás o mur-
múrio da monstruosa aproximação, tudo o rodeia, tudo se dá a
ver, a ouvir, a paisagem está cheia de ruído,
quer virar-se, porém não sabe para onde, quer descobrir a pa-
lavra que à sua volta o mundo parece dizer, quer pronunciá-la,
afastar o seu mal nessa pronunciação, quer falar, mas só há
coisas cegas, só há a maldade dos objectos, a sua nitidez é a sua
maldade,
eis o mundo um segundo depois de Deus o ter criado, segundo
imenso com o homem no seu centro, quando nomes e coisas
desfizeram já a sua absoluta intimidade,
ando: disse: por um mundo onde já não há a intimidade de
Deus, ando pelo relevo de uma frase que desconheço, isto, isto
: eis o nome que sei dar às coisas,
anda pela álea e a álea é uma repetição: há sempre um melro
negro que a atravessa aos saltos, e um esquilo em corrida,
há sempre Deus a escrever o texto que o homem percorre,
tu lês mas não compreendes, a formiga já está no teu ombro, so-
bre enchumaço, animal incerto na sua solidão, à tua frente as
folhas caem, é a avenida das faias, ou a dos castanheiros, como há
muitos anos a avenida das tílias, é a avenida das árvores a que
Deus se entretém a mudar o nome, embora seja sempre o mesmo
nome a embaciar-te os olhos, é a avenidas das tílias: diz ele: Lin-
den, unter den Linden, e levanta a perna, até ficar paralela ao
chão, fixa nesses passos de som cadenciado, passos de ganso, a
derrocada das tílias, folha a folha, secas, riscando o ar, abrem um
poço com a forma de folha, palminérveas: diz a criança na escola,
palminérveas: diz o homem: crenadas, obadas, fendidas, par-
tidas, mas as das tílias: interroga-se: como são as folhas das -
lias?, só o seu cheiro em queda vem do passado, será que havia
tílias? ou eram outras as árvores? os nomes são assim tão persis
tentes? O homem olha à sua volta e diz: faias, e emenda: casta-
nheiros, olha o pássaro negro aos pulos a atravessar a álea e diz:
melro, olha o animal de rabo comprido e tufado e diz: esquilo,
olha o cinzento sobre a sua cabeça e diz: céu, olha a casa, a sua
humidade branca, e diz: casa, olha o pedrisco e diz: calcário, olha
a formiga e diz: formiga, olha o lago que ainda não vira e diz: la-
go, olha as carpas e diz: carpas, olha a água e diz: água, olha o
limo e diz: limo, e emenda, algas, olha os nenúfares e diz: rã,
olha a rã e diz foge, ouve Franz e diz: mãe, e repete: mãe, e chora, ou-
ve o choro, ouve-se no choro e diz: eu choro, olha à sua volta e diz:
é tarde, e emenda: é de tarde, e acrescenta: é o fim da tarde,
é tão tarde,
Franz Franz onde está o teu irmão?
Não sei, talvez junto ao Traisen, a pescar,
A mulher aproxima-se dele: que estás aqui a fazer, parado, no
jardim?
Ele encolhe os ombros,
Ela repete: que estás aqui a fazer, parado, no jardim?
Ele chega-lhe a boca ao ouvido e murmura: aquilo é uma faia,
aquilo é um melro, aquilo é um esquilo, aquilo é um lago, aqui-
lo é um carpa, aquilo é o céu, aquilo é um charco, aquilo é um
nenúfar, aquilo é uma rã.
e abre os braços
e abre as mãos
e diz: és tu,



Rui Nunes
Ouve-se sempre a distância numa voz
Relógio D´água, 2007

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